Vítima de assalto, compositor Naval comenta projeto de paz nos estádios apoiado por Eurico

Domingo, 31/05/2015 - 06:36
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Três dias após o assalto de que foi vítima dentro de um ônibus no Rio, o compositor Josué Clementino da Silva, o Naval, 55 anos, divide o tempo entre telefonemas de apoio e caixas de remédio. Ao chegar a seu escritório no Centro para conversar com o Terra , nesta quarta-feira (27), ele tirou da pasta o coquetel anti-HIV, que terá que tomar por um mês, além de antibióticos e remédios contra hepatites B e C. Tudo porque Naval, sentindo que poderia ser morto, reagiu e dominou o assaltante, armado com uma faca, dentro do coletivo 378, que fazia a linha Marechal Hermes-Centro.

O ataque, que lhe rendeu um corte profundo no braço esquerdo, aconteceu em pleno domingo, à luz do dia. Os medicamentos, que provocam enjoo e dor de cabeça, são preventivos e obrigatórios por causa do contato com a faca do assaltante. Qualquer vestígio de sangue contaminado pode causar dano à saúde.

O caso de Naval chama atenção por uma coincidência: o compositor, que teve algumas de suas 380 composições gravadas por nomes como Bezerra da Silva, Fagner, Leci Brandão, Péricles e Jovelina Pérola Negra, tem um projeto pela paz no futebol. A campanha “Papo de Campeão” reúne artistas em um CD com músicas que pedem o fim da violência entre torcidas. Em fase de captação de recursos, o projeto pode ser ampliado após o episódio. A ideia é fazer uma grande mobilização de artistas pela paz no Brasil. Confira a entrevista com o compositor, que entrou para as estatísticas como a nona vítima de assalto com uso de faca na cidade em poucos dias:

Terra - Foi a primeira vez que você foi assaltado?

Naval - Nunca tinha sido assaltado. Moro no Rio desde 1977, sou pernambucano. E aí agora acontece isso. E eu não reagi, eu me defendi. Independente do que fizesse, ele veio com a faca na minha direção e disse que ia me matar. Eu consegui tomar a faca dele, pensaram que eu esfaqueei ele, não foi isso. É uma coisa muito chata, sabe? Ele estava com o celular, com fone de ouvido ouvindo música. Sentou atrás de mim, depois do lado, estava me estudando. O que chamou atenção dele foi o tablet, depois o celular. Quando ficamos só eu e uma senhora ele resolveu atacar. Essa mulher foi muito importante. Quando eu consegui jogá-lo pra fora do ônibus, se ela não puxa a perna dele, a faca pegava aqui (no peito). Joguei ele pra fora do ônibus. Fiquei com raiva porque o motorista não fechou a porta e nem arrancou com o carro. Depois é que ele fez isso. Ele andou um pouco, eu pedi pra parar numa esquina em que tinha uma patrulhinha (PM). Quando fiz isso, o motorista foi embora.

Terra – Você anunciou que iria processar a empresa de ônibus. Mantém essa intenção?

Naval - Vou, uma advogada disse que a empresa (Vila Real) não tinha nada com isso, que eu tinha que processar o Estado. Mas isso tem que dar em alguma coisa, porque teve a omissão de socorro, não tem registro da empresa, não tem BO (Boletim de Ocorrência).

Terra - Você ainda está vivendo o impacto da violência. Mas é possível já avaliar se muda sua relação com a cidade?

Naval – Minha cabeça ainda está muito tumultuada. Ontem mesmo, no ônibus, se a pessoa ficasse olhando muito pra mim, eu já achava estranho. Mas não é, eles me viram na televisão. Ontem, aqui no elevador (do prédio onde tem escritório), o cara entrou com uma mochila vazia, murcha, embaixo do braço e me olhava pra caramba, aí eu não entrei no elevador. Saí, fingi que ia falar no celular e esperei subir. Falei com o segurança e ele disse que eu estou com trauma..

Terra – Você contou que está tendo acompanhamento psicológico.

Naval – É, vou ter que frequentar, fui ontem a primeira vez. Eu vou por causa do trauma. Agora mesmo estava no trem, teve uma gritaria, porque tiraram um camelô, que tinha escondido as coisas (que ia vender) e a mulher já achou que era assalto. Os guardas tiraram ele e as mulheres ficaram gritando que ele era um trabalhador. Aí eu saltei e peguei um ônibus. Mas lá entrou um cara esquisito, andava do meio pra frente e olhava pra mim.

Terra - Você tem algumas composições que falam justamente da busca pela paz...

Naval - Sim, tem uma, inclusive, que nós fizemos há uns 4, 5 anos, gravada pelo Fagner e pelo Netinho (de Paula) em que eu falo da criança. A letra é minha, do Beto Correa e do Paulinho Resende. (Emocionado, coloca a música pra tocar e cantarola. A letra fala em certo trecho: ‘somos o futuro da nação, é assim que falam das crianças. Quando algum de nós estende a mão, não espere esmola ou compaixão. Só quer ter direito à esperança’). O Netinho chorou em certo trecho da música quando ele foi gravar.

Terra - O surpreendente em você é que não há um discurso de ódio nesse momento.

Naval – É, isso mesmo... As crianças estão aí. Na hora eu tive ódio dele, claro, porque ele dizia que ia me matar e vinha com a faca. Agora, ele não era primário, sabia o que estava fazendo, é experiente. Olha, ele acabou de me assaltar e foi assaltar outro ônibus. Foi premeditado. E eu só consegui dominá-lo porque fui fuzileiro naval, tenho defesa pessoal. Ele era mal, não foi a primeira vez que assaltou.

Terra - Como você avalia essa série de assaltos a faca no Rio?

Naval - Espero que seja só uma onda. Eu estava ontem, na portaria do prédio, dando entrevista, quando aconteceu outro caso - no Largo da Carioca. Foram tomar a bolsa de uma senhora com canivete, um rapaz foi ajudar e foi cortado do mesmo jeito que eu. Rasgaram a camisa dele. Ele estava defendendo uma senhora e foi atacado.

Terra – Qual a saída para tanta violência?

Naval – Não sei... tem que ter mais policial nos ônibus. Tem pouco policial. Agora, só se fala mal da polícia. Eles foram muito competentes comigo. E era uma mulher, uma mulher desse tamanho (aponta indicando baixa estatura), a Tamires, e o Batista... Os dois saíram comigo e correram na viatura atrás (do ladrão). Fui ao hospital tomar ponto (seis) e depois, para a delegacia.

Terra – E sua família, como reagiu?

Naval – Minha família é toda de Recife, me ligaram desesperados. Minha namorada, que mora em Porto Alegre, também me ligou, apavorada. Como são as coisas né? Eu passei o sábado numa favela, lá dentro da favela, e não teve nada. Almocei lá, não tive problema nenhum. Aí, na cidade, num domingo, vindo pra cá que eu tinha uma reunião de trabalho, acontece isso.

Terra - Conte um pouco sobre esse projeto contra a violência nos estádios. A ideia é gravar um CD?

Naval – Vários artistas já se dispuseram a participar. Vamos refazer o clipe (já gravado com a participação dos cantores Waguinho, Dominguinhos do Estácio, Anderson do grupo Molejo, entre outros) porque ele era, inicialmente, para a Copa. Eles estão com a camisa da Seleção e o Brasil tomou de 7... Quero refazer com a camisa dos times (brasileiros). O projeto está aprovado no Ministério da Cultura e estou em fase de captação. A música se chama “Papo de Campeão”, minha e do Beto Correa. Na verdade, eu quero ampliar o projeto. Era de paz entre as torcidas. Só que agora eu vou fazer sobre paz geral. (mostra outra música de sua autoria, “O futuro começa agora”, que também fala de violência). O povo tá muito violento, ninguém tem Deus no coração. As pessoas estão pensando em matar. É muita covardia, sabe? Fizemos uma música chamando os gringos para a Olimpíada de 2016. Vem pro Rio como, se os caras esfaqueiam todo mundo?

Terra - Qual a sua expectativa pra tentar colocar essa ideia nova de pé?

Naval – Vamos falar de paz no Brasil, vamos ampliar, ainda temos um prazo de dois anos. Mas eu quero usar dentro do futebol também e aproveitar clipe, que é lindo. Os grandes times sabem que precisam da torcida. Vou procurar todos os times, os presidentes dos maiores times do Brasil: Flamengo, Corinthians... O Eurico (Miranda, presidente do Vasco) já tá me apoiando.

Terra – Depois do que você passou, qual o conselho ou recado é possível dar às pessoas, que também se sentem atônitas?

Naval – Eu aconselho as pessoas a não ficar exibindo. Hoje eu vi umas meninas exibindo celular ‘deste tamanho’ no ônibus. As pessoas olham, mas olham recriminando, como quem diz: ‘guarda isso’. Eu não vou carregar mais tablet, por exemplo, e celular só o antigo. Eu acho necessária a conscientização, através dos artistas mesmo, músicas falando de paz... Eu estou com o Beto Correa fazendo uma música assim, sobre esse momento que eu vivi, pedindo paz. Até onde vai isso, cara? As crianças estão crescendo vendo isso e achando que é normal. Você entra nos lugares e já vê as crianças brincando assim ó: Pá! Pá! Pá! Pá! Pá! (simula disparo de tiros). As crianças pegam pedaço de pau, ficam se escondendo como quem está dando tiro umas nas outras. Elas vão crescer fazendo isso, não tem outra saída. Eu estou preocupado.



Fonte: Terra