Conheça a história de Friaça, autor do gol do Brasil na final da Copa do Mundo de 1950

Domingo, 22/06/2014 - 15:25
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Aparentemente, a cidade de Porciúncula fica no fim das estradas solitárias do noroeste fluminense. Depois da serra, do pasto e algum cheiro de esterco. Na realidade, está quase em Minas, 350 quilômetros vindo do Rio. Nesta simpática lonjura de 18 mil habitantes, o mais célebre deles, Albino Friaça Cardoso, é apenas um monte de fotografias na parede. Mas como doem. Dona Maria Helena, a viúva, culpa o menisco para não subir a escada que leva ao blusão de lã azul e branco, agora emoldurado, usado por seu marido na outra Copa disputada no Brasil, a de 1950. “Vá você. Fico aqui embaixo, porque sinto demais”, ela diz, com doçura. Pode ser só um joelho cansado, ainda que tenha mais cara de saudade. Friaça morreu em 2009, aos 84 anos, dois dias antes de eles completarem seis décadas de casamento.

Esguio atacante que fez fama no Vasco e no São Paulo com sua rara habilidade de jogar bem tanto pela ponta-direita como pela esquerda, Friaça ocupa uma categoria singular no futebol brasileiro. Há aqui os heróis, como Pelé, Carlos Alberto, Romário; os anti-heróis, como Fio, Dadá, Biro-Biro; os vilões, quase sempre goleiros engolidores de frango; e há Friaça - sozinho na condição de quase-herói. Ele chegou aí ao marcar o gol do Brasil no Maracanazo, a derrota por 2 a 1 para o Uruguai na final de 50. Uma façanha. Sonho de todo boleiro que se preza, inigualável por enquanto: um gol pela seleção brasileira em decisão de Copa, no palco mais cintilante do futebol, abarrotado como jamais se viu ou se verá de novo. E quem dá bola? Daquele 16 de julho fala-se mais de Barbosa, Juvenal, Bigode, Gigghia, Schiaffino, Obdulio e de falhas, culpas, tapas, lendas e exageros assombrando seus nomes. Friaça é só a encarnação do en passant.

No site da Fifa, sua presença se resume a uma tabela de números gelados. No relato do Estado sobre a tarde que virou túmulo, seu nome surge cartorial, encabulado, um tédio danado. Se Jair esteve “irreconhecível”, se Bigode foi “uma verdadeira lástima”, se Ademir “falhou completamente nos chutes” e se Barbosa errou numa defesa que “qualquer guardião de segunda ordem teria efetuado com êxito”, Friaça atuou “dentro de suas possibilidades, sem comprometer”. Nada mais. Aquele gol aos 2 minutos do segundo tempo, histórico sem passar à história, foi o único do camisa 7 pela seleção. “(Depois) passei 30 minutos fora de mim”, Friaça contou ao repórter Geneton Moraes Neto no livro Dossiê 50 (Maquinária Editora). Seria o primeiro de seus alheamentos pós-Maracanazo.

O segundo se deu depois do jogo, quando ele voltou aos dormitórios do Vasco, onde a seleção se concentrara, para passar a noite. Acordou no dia seguinte, sem saber como, em Teresópolis, debaixo de uma jaqueira. Levou dois dias para se achar e seguir a Porciúncula. Dona Maria Helena o esperava de terço na mão. “O Fria chegou um fiapo”, ela relembra. “Aquele jogo mexeu com ele pro resto da vida. Um homem bom, risonho, amável, nunca levantou a voz para nenhum dos quatro filhos e muito menos para mim. Mas, no fundo, carregava uma dor, e só eu sei de que tamanho. Ele lamentava não ter feito o suficiente, veja você. E tinha outros dez em campo naquele dia...” Dor maior somente na morte do filho Ricardo, de 34 anos, numa queda de asa-delta, em 1990.

O terceiro sumiço de si aconteceu em 2005, quando o amigo Jorge Lima levou Friaça “lá pra baixo”, que é como os porciunculenses se referem ao Rio, para gravar um depoimento à BBC dentro do Maracanã. Lima rememora: “Entramos no campo pelo túnel dos vestiários, refazendo o caminho dos jogadores. Até então, o Fria estava falante, contente. Mas pôs o pé no gramado e ‘desapareceu’. Ficou mudo, o olhar perdidão.” Lima o chamava, o pegava no braço. E Friaça avoado, a cabeça erguida para as arquibancadas, não se sabe se buscando a massa explodindo com seu gol ou silenciando com a derrota do Brasil. Ausências demais para um homem que, ao perder a vista direita num acidente de automóvel, se recusou a receber uma prótese. Tinha pavor de ficar sem os sentidos na anestesia geral.

Apesar de tudo, Friaça não se deixou encharcar de amargura e afastamentos. Longe disso. Depois de se aposentar, no final dos anos 50, voltou ao começo de tudo - Porciúncula, onde nasceu num sítio e que adorava propagandear aos colegas jogadores como “a cidade que tem mais mulher bonita no Brasil”. Zizinho, Telê, Jair Rosa Pinto, vários vieram ver de perto. Biguá, do Flamengo, e Lafaiete, do Fluminense, comprovaram. Casaram-se com moças da terra. Lafaiete, com a mais bela de todas, Manzita, morena de coxas grossas e olhos perigosos que enlouquecia a homarada ao voltar do banho de rio com os pés descalços e o corpo molhado dentro de um vestido fino. Nessas reuniões de boleiros, se a prosa que geralmente fazia o almoço grudar na janta permitisse, os rapazes batiam bola no estádio municipal. “Foi ali que vi o Fria, já quarentão, marcar um gol impossível, sem ângulo, batendo na bola de um jeito como só ele batia”, afirma o amigo Lima. “Ele não chutava de rosca, de chapa ou três dedos, mas com o peito do pé, e muito forte. Um assombro.” Assombro também era o tanto que fumava e biritava. “O cara que mais almoçava em Porciúncula”, entrega Lima. “Vivia convidando: ‘Vamos ali tomar uma pra almoçar?’.”

Em 2000, o campinho que Friaça se orgulhava de, molecote, ter ajudado a cercar com placas de zinco recebeu seu nome. “Não houve unanimidade na votação na Câmara, dá pra acreditar?”, impressiona-se Lima. Friaça deu seus primeiros chutes ali, pelo Fluminense de Porciúncula. Depois, passou ao Ipiranga de Carangola, da cidade mineira vizinha. Até que o Vasco veio fazer dois amistosos, o ponteiro magricela marcou um gol em cada jogo e o levaram para São Januário. Antes, porém, precisou vender sua égua para comprar a passagem “lá pra baixo”. Na sexta-feira passada, três meninos de quinta série empinavam pipa na frente do estádio. Aponto a placa acima do portão azul e pergunto: “Quem é esse tal de Albino Friaça Cardoso?” Nenhum engasga. “O Friaça. Fez o gol do Brasil na Copa de 50”, diz o primeiro. “Ele caiu na prova de português esta semana”, conta o segundo. “O professor de matemática disse que é a pessoa mais importante da história de Porciúncula”, arremata o terceiro.

Nesse mesmo dia, a secretária de Cultura da cidade, Ivana Porto, lamentava a falta de verba para construir um Museu Friaça. “No ano passado, quase conseguimos fazer uma estátua, mas o orçamento também não deu. Pro busto, de R$ 12 mil, daria. Só que nós queremos um Friaça inteiro, com bola e tudo, e de bronze. Como o Carlos Drummond de Andrade de Copacabana. Custaria R$ 55 mil, além de nossas possibilidades, infelizmente.” Em sua sala na antiga estação ferroviária transformada em centro cultural, agora tomada por fitinhas verde-amarelo e retratos de Friaça até nas janelas, há uma linda foto do dia em que o ponteiro e dona Maria Helena partiram em lua de mel no noturno para o Rio. Os dois na porta do vagão-dormitório, sorrindo para o povo. Era janeiro de 1950. Friaça já estava convocado para a Copa. Pelo casamento, ganhou 15 dias de dispensa do técnico Flávio Costa. “Fomos ao Rio e, em seguida, a São Paulo, dormindo cada noite num hotel diferente”, ri dona Maria Helena. Seis meses depois, passado um pouco das quatro da tarde 16 de julho, o centro-médio Danilo passou a Jair, que tocou a Zizinho e este empurrou a bola para a direita adiantada. Friaça, o de Porciúncula, entrou batendo firme. Gol do Brasil! Gol, gol, gol! O único que temos em final de Copa do Mundo disputada em casa. Comemorado por 173.850 pagantes, noves fora convidados e penetras. Gol de Friaça! Um gol, assim, de passagem.



Fonte: Estadão (texto, foto), NETVASCO (legenda)

Nota da NETVASCO: Apesar de ter sua história futebolística ligada, principalmente, ao Vasco, Friaça disputou a Copa de 1950 como jogador do São Paulo, clube pelo qual teve uma curta passagem.