Felipe: 'Não tem como comparar: minha ligação é muito maior com o Vasco'

Sexta-feira, 04/04/2014 - 22:17
comentário(s)

Com atuações memoráveis pelo Vasco contra o Flamego e vice-versa, ainda em boa forma, aos 36 anos, Felipe leva uma vida de aposentado que diz muito sobre a queda de qualidade do futebol carioca. Enquanto os rivais, que começam a decidir o Carioca neste domingo, lutam para levar adiante a tradição de clubes formadores, o ex-craque busca o filho caçula numa escolinha do Barcelona, na Barra. Ao voltar para casa, na tarde da última quinta-feira, Felipe se dá conta de que esqueceu a chave e de que não há ninguém para lhe abrir a porta. Pelo telefone, revela seu plano a alguém que o desencoraja.

— Deixa que é mole — diz, antes de deixar carteira e celular no jardim externo à propriedade.

Mesmo de chinelinho, ainda se mostra pronto para o desafio. Se já não basta para deixar os marcadores para trás, como fez na última decisão de Carioca entre Vasco e Flamengo, em 2004, quando foi o craque da conquista rubro-negra, a arrancada ainda é suficiente para contrariar a ação do tempo e da gravidade. Depois da partida no plano, investe contra o muro com dois passos na transversal que o permitem usar o braço para atingir o topo e saltar até o outro lado.

— Isso é para quem teve infância no subúrbio.

De volta em segundos, abre a porta e o coração ao reviver as emoções do clássico. Ao contrário da estátua do Cristo Redentor, que harmoniza as tensões da cidade com um braço voltado para São Januário e outro para a Gávea, um simples mortal não é capaz de estender as mãos para Vasco e Flamengo simultaneamente. Com a mesma velocidade com que resolveu o problema da chave, Felipe não fica no muro ao falar da rivalidade.

— Tive o privilégio de ter agradado as duas torcidas, mas não tem como comparar: minha ligação é muito maior com o Vasco. Sou o jogador que mais campeonatos ganhou pelo clube.

Seja em quantidade ou qualidade, é difícil que alguém supere os sete títulos de Felipe. Foram dois Brasileiros, uma Libertadores, uma Mercosul, um Rio-São Paulo, um Estadual e...

— A Copa do Brasil de 2011. Tive que voltar para o Vasco ganhar alguma coisa de novo.

A ironia é reveladora da mudança pela qual passaram a autoestima vascaína e a qualidade dos clubes do Rio ao longo da carreira de Felipe. Último time carioca a ter a hegemonia no futebol nacional, com sucessivas conquistas entre 1997 e 2001, o Vasco amargou dois rebaixamentos nas últimas seis edições do Brasileiro e já não vence o Carioca desde 2003. Acostumado a conviver com a dor e a delícia de ser vascaíno, desde que começou no fustal, aos seis anos, Felipe já não sente o desconforto de outrora diante de uma inflamação crônica.

Em meio às pancadas contra o piso duro da quadra de futsal, viu seu talento crescer junto com um joanete no pé direito que representa um calo para todos os vascaínos. Depois de perder as decisões de 1999 e 2000 para o Flamengo, Felipe só encontrou o alívio quando passou para outro lado. Na Gávea, a chuteira que usava nos treinos tinha um furo para evitar a compressão do joanete. Livre para mostrar seu talento, num esquema em que começou na meia direita e acabou como atacante, Felipe mexeu na ferida alheia. Sem vencer o rubro-negro numa decisão desde 1988, aquela foi a quarta final consecutiva que o lado rubro-negro das arquibancadas celebrou o título com gritos de “vice de novo!”.

Embora a escrita seja construída pelo vencedores, a história de Felipe no clássico permite outras leituras. No lugar da visão generalizante que aponta para um jejum de quase três décadas, qualquer vascaíno sabe o quanto foram saborosas as goleadas sobre o Flamengo na semifinal do Brasileiro de 1997 e na decisão da Taça Guanabara de 2000. Mais perto dos negócios que abriu para ajudar à família — dois supermercados e um restaurante japonês —, Felipe tem a própria contabilidade para mudar de lado do balcão junto com a freguesia que oscila de acordo com a estação

— O problema é que o Vasco bateu muito no Flamengo em semifinais e finais de turno mas só se fala nas derrotas das decisões. Isso é bom para vender jornal. Tudo bem, realmente teve uma sequência. A gozação faz parte e alimenta a rivalidade desde que seja encarada com humor e sem violência — disse Felipe, que não se deixa levar pelos instintos mais primitivos de um torcedor. — Minha família já era vascaína antes de eu começar a jogar. Nunca gostei muito de torcer. Meu pai me chamava para eu ir com ele na arquibancada, mas eu ficava jogando pelada.

Salvo pela calvície, a cabeça não mudou muito. Seu programa de domingo ainda passa longe do Maracanã.

— Vou jogar meu futevôlei. Depois, se os amigos quiserem ver o jogo em algum lugar, não tem problema. Por mim mesmo, nunca paro ver jogo, ainda mais agora que a qualidade tem caído tanto — disse ao lembrar que o problema se acentua quando o baixo nível técnico se soma à adrenalia alta das decisões. — Normalmente final é um jogo mais feio, em que a vontade e a determinação prevalecem. Nem posso dizer que vou torcer pelo Vasco, porque nunca fui muito de torcer, mas prefiro que o Vasco ganhe.

Saudade das raízes no subúrbio

Por maior que seja seu distanciamento, Felipe carrega uma identidade vitoriosa no bolso. Nascido em 1977, ano em que o goleiro Mazaropi deu o título estadual ao Vasco em decisão por pênaltis com o Flamengo, cresceu em meio a ídolos e referências que hoje faltam aos clubes do Rio. Daquele Vasco da metade dos anos 1980, que tinha Roberto Dinamite como ídolo, Romário despontando e Edmundo por vir, só resta a amizade com Pedrinho, companheiro nos melhores e piores momentos das últimas três décadas. Nas voltas que a carreira de um jogador dá, chegar ao fim é um forma de voltar ao começo.

— Fiz questão de botar meu filho mais velho no fustal do Vasco. Sei que ele não vai ter a infância com a liberdade que eu tive. Então tento fazer um pouco do sacrifício que meu pai fez por mim. Ele pode até não virar jogador mas é importante estar no Vasco para conhecer diferentes condições sociais, o pessoal do subúrbio e do Tuiuti.

Felipe sente mais falta das raízes, que o fazem voltar à casa da mãe, em Higienópolis, do que do período em o que seu futebol dava flor e frutos pelos gramados onde passasse.

— Amo o futebol mas não estou sentindo saudades de jogar. Hoje, sou um pai mais presente, acordo todo dia às dez para seis, vou jogar meu futevôlei e estou fazendo stand up — disse ao falar da rotina à beira mar denunciada pela cor da pele. — Não estou bronzeado, estou preto mesmo.

Incentivado pelos amigos e aprender a surfar, Felipe cultiva o equilíbrio que a decisão exige.

— O que mais atrapalha é tratar a semana da final como algo especial. Tem que virar rotina — disse, ao comparar a tensão geral e seu desempenho particular nos dois lados do clássico. — Perguntam onde fui melhor, mas joguei muito nos dois. A diferença é que no Vasco havia muitos outros jogadores de qualidade e no Flamengo, pela limitação do elenco na época, eu me destacava mais.

Jovem aposentado, senhor personagem do clássico, Felipe olha para trás como os beques faziam diante da impossibilidade de conter seus dribles.

— Pena que a carreira passe tão rápido.

Seu lamento serve para que os jogadores tenha a dimensão do que está em jogo na primeira final entre Vasco e Flamengo no novo Maracanã. Assim como Felipe ao atravessar o muro, uma decisão passa rápido. E deixa muita gente pelo caminho. Só os grandes campeões conseguem voltar para abrir a porta que o esquecimento fechou.

Fonte: O Globo Online