Em 1986, Pelé e Renato Aragão gravaram cenas de filme no Maracanã em dia de título do Vasco; relembre

Quarta-feira, 06/07/2016 - 12:31
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Palco de grandes jogos, casa de shows de artistas como Frank Sinatra e até local de demonstração de fé com as visitas do Papa João Paulo II, o Maracanã também teve um dia de circo na sua história. Foi em 1986 quando recebeu 'Os Trapalhões', então o grupo de humor de maior sucesso no país, para gravar um novo filme. Ao lado deles, estava o melhor jogador de todos os tempos: Pelé.

No 'Maior do Mundo', eles filmaram algumas cenas de "Os Trapalhões e o Rei do Futebol" diante de 121 mil pessoas, que acompanhavam naquele 20 de abril um confronto entre Flamengo e Vasco na final da Taça Guanabara. O longa estrearia nos cinemas brasileiros dois meses depois, em 26 de junho - serão exatos 30 anos no próximo domingo.

"Ainda era o Maracanã antigo, tinha a geral... Aquilo estava abarrotado de vascaínos e flamenguistas. Então, anunciaram no luminoso: 'Atenção torcedor: no intervalo vamos gravar uma pequena parte do novo filme de 'Os Trapalhões' com Pelé'. O intervalo foi até um pouco mais longo, uns 20 minutos. Quando entramos em campo foi aquele delírio", relembrou o humorista Renato Aragão, 81, por telefone, ao ESPN.com.br.

No longa, o líder de 'Os Trapalhões' e famoso pelo personagem Didi interpreta um roupeiro humilde, cujo nome é Cardeal. Ele acaba sendo nomeado contra a própria vontade técnico interino do Independência, o time dos 'mocinhos'.

Já Pelé faz um jornalista esportivo, cujo nome é uma das piadas do roteiro: Nascimento (o nome real do ex-jogador é Edson Arantes do Nascimento). Apesar de ser repórter, ele acaba quebrando um galho como o goleiro da equipe na partida decisiva.

"Foi uma experiência muito boa filmar ao lado de 'Os Trapalhões' porque, apesar de ter feito vários filmes, foi o primeiro filme cômico que participei na minha vida. Minha inspiração [para fazer o papel de jornalista] foi o Nelson Rodrigues, um grande fã do futebol. Foi ótimo", declarou Pelé, 75, especialmente para a reportagem.

A sequência gravada no Maracanã corresponde ao final do filme e foi feita aproveitando as torcidas de Flamengo e Vasco como pano de fundo. Além deles, havia cerca de 3.500 figurantes, segundo consta no livro "O Cinema dos Trapalhões por quem fez e por quem viu" (do autor Rafael Spaca e lançado neste ano pela editora Laços).

"Os torcedores aplaudiram muito a nossa entrada no campo. Eles nem queriam saber se eu era vascaíno, flamenguista ou qualquer outra coisa. Eles queriam ver 'Os Trapalhões' e o Rei do Futebol. Foi muito emocionante. Para mim foi uma realização pessoal: entrar no Maracanã lotado ao lado do Pelé", disse Aragão.

Apesar de o humorista afirmar que a gravação ocorreu no intervalo do duelo, uma reportagem da revista "Placar" em abril daquele ano dizia que as filmagens foram feitas durante a preliminar entre Vasco e Flamengo, com muita festa.

Já na partida fictícia o Independência está perdendo por 3 a 0 para o Gavião a dez minutos do fim, com um jogador expulso e tendo de virar o placar. É neste momento que Cardeal deixa o posto de técnico e ingressa em campo como atacante ao lado de Nascimento, que assume como goleiro. Ambos pisam no gramado juntos, subindo os antigos túneis dos vestiários do Maracanã, com a torcida do Vasco ao fundo.

Para aumentar a 'tensão', Cardeal acaba marcando um gol contra assim que entra no jogo. "Nem me lembrava disso", disse Aragão, aos risos. Depois marca quatro vezes, empatando o duelo, e deixando para Nascimento fazer o gol da vitória.

"Tinham jogadas engraçadas. Lembro que eu batia um escanteio que eu mesmo faço o gol. Tem outra que o Pelé defende um pênalti, ele era o goleiro, não é? Na emoção, fui dar um abraço nele e peguei a bola das mãos dele. Aí ele fala 'Não, Cardeal, não pega a bola, não'. E o juiz dá pênalti de novo", relembrou Aragão. "Depois eu sei que ele faz um gol de tiro de meta. Nossa Senhora, aquilo foi muito bonito".

"Para mim foi maravilhoso voltar ao Maracanã com todo aquele público presente, sem ter a responsabilidade de fazer um gol ou ganhar uma partida", disse Pelé.

Se na ficção o time de Cardeal e Nascimento é campeão de maneira surreal com um virada por 5 a 4, na realidade o vencedor na Taça Guanabara foi o Vasco, que na época tinha os jovens Romário e Mazinho, além do já veterano Roberto Dinamite. O Flamengo, por sua vez, contava com Andrade, Jorginho e Bebeto (leia mais sobre aquela decisão abaixo).

PELÉ E PELADAS

Com uma longa cinematografia, Renato Aragão foi o dono da ideia de fazer um filme de 'Os Trapalhões' atrelado ao futebol. Garantiu que o projeto nada teve a ver com a Copa do Mundo do México, realizada naquele mês, na qual a equipe de Telê Santana foi eliminada pela França nas quartas de final em uma melancólica decisão por pênaltis.

"O futebol é uma paixão nacional. Eu acho que o futebol mexe com todas as idades e não tem classe social. Vamos fazer uma pelada e vão jogar todos. Aí todos se nivelam. Não tem rico nem pobre nem branco nem preto. Entendeu? Futebol é uma atração nacional. Por isso futebol é bom [tema para um filme]", disse Aragão.

O primeiro passo dado por ele foi contratar o experiente diretor Carlos Manga para comandar o longa. Famoso por dirigir diversas 'chanchadas' com Oscarito, Grande Otelo, José Lewgoy (que participa do filme de 1986), ele estava afastado há 11 anos das telonas e vinha se dedicando à televisão. Mas topou a missão.

O passo seguinte foi batalhar para incluir Pelé no filme, missão dada para Manga.

"Um filme sobre futebol só poderia ter como ator principal o Pelé. Foi difícil. Pelé estava em um vai e vem. Como vamos conseguir? Eu disse para o Manga: 'Você é o rei disso, é um grande conquistador. Então, você vai trazer o Pelé para a gente fazer o filme. Vamos fazer um filme para arrasar'. O Manga ficou em pânico, mas fez esse filme com muito carinho e com muita vontade. E conseguiu o Pelé", disse Aragão.

Além de protagonista, o Rei do Futebol também foi produtor do longa por meio da empresa Pelé-Saad Comunicações e Empreendimentos ao lado da RA Produções.

"O Pelé vinha filmar naqueles períodos que podia. Filmava em duas semanas, depois saia para os compromissos dele. Depois voltava. Fazia tudo sem dormir. Eu nunca vi um profissional tão perfeito como Pelé. Ele chegava zero de sono. A gente arranjava um camarim para ele, onde a gente estivesse, e ele descansava um pouco. Gravava, filmava. Fiquei ainda mais admirador do Pelé", declarou Renato Aragão.

Aos 45 anos e a nove aposentado do futebol, Pelé tinha um grande status e era o brasileiro mais famoso no mundo. Mesmo assim o ex-camisa 10 do Santos e da seleção brasileira impressionou seus colegas de filmagem pela humildade.

"Uma recordação maravilhosa que tenho daquela gravação é a convivência com a simplicidade do Pelé. Uma pessoa muito simples, demais. Lembro que ele não exigia nada. Tinha um trailer só para ele, mas ele nem usava. Fazia questão de ficar com a gente. Um ídolo", relembrou Dedé, 80, por telefone, à ESPN.

Apesar de mais reservado, os dois 'trapalhões' recordaram que o Rei do Futebol costumava contar histórias da época em que foi jogador (1956-1977).

"Fomos gravar a primeira parte do filme no Maracanã sem público. A gente jogava de um lado, onde a câmera batesse. No intervalo [das gravações], a gente sentava no gramado e perguntava para o Pelé curiosidades de fã. E ele falava: 'Renato, nós estamos sentados aqui [a gente estava fora da área, pra lá da meia lua] e eu chutava daqui, eu e o Gérson, mas a gente não chutava para dentro do gol. A gente chutava na baliza, para acertar ela em cima'. Ele me disse que tanto ele como o Gérson eram os únicos que não erravam uma única vez. Eu dizia para ele: 'Poxa, se eu fosse chutar daqui, eu levaria três anos para acertar naquela baliza ali' [risos]. Ele era descontraído, mas muito fechado. Não se abria muito, não. A gente que perguntava."

Também era comum rolarem partidas de futebol entre a equipe de filmagem e os atores/humoristas do filme após as gravações independentemente das locações usadas, que incluíram destinos como Guaratiba, Barra da Tijuca, Floresta Country Clube, Marapendi e o clube social do Vasco. Tanto Renato Aragão como o Rei do Futebol eram figuras presentes nesses duelos amistosos.

"O Renato Aragão sempre foi muito fã de futebol. Jogava muito bem, era bom de bola mesmo. Acho que ele até jogou em um clube do Ceará na juventude. Eu não jogava porque estava machucado. Uma curiosidade é que ele não usou dublês no filme nem na cena em que ele faz um gol de bicicleta no Maracanã", assegurou Dedé.

LEMBRANÇA TRISTE

Apesar de 'Os Trapalhões' serem sinônimo de humor, um dos integrantes do quarteto revelou tristeza ao ser questionado sobre o filme com Pelé.

"Eu tenho uma lembrança triste porque eu não pude participar do filme como fora planejado. Eu me machuquei numa cena que eu tinha de pular de um lugar muito alto. Ao cair com os pés no chão eu não vi que tinha uma pedra e fiquei com os dois calcanhares quebrados. Durante as gravações usei uma bota com gesso preto. Fiz muitas cenas sentado. Tanto é que no filme meu papel ficou diminuído muito, era para ser bem maior", disse Dedé.

Responsável por coreografar as cenas de luta nos filmes do grupo, ele revelou que não gostava de usar dublê. Por isso e por estar machucado, ele quase não aparece na única cena de briga que ocorre no filme. "O Pelé tinha um cuidado especial comigo e medo de que eu me machucasse ainda mais. Eu sempre coreografava tudo porque fui criado em circo e sabia os movimentos".

"Lembro que em uma das cenas de briga um ator forte, que a gente chamava de Hulk, acertava um sapato na cabeça do Pelé e ele até se machucou por causa do salto. Ficamos todos preocupados, mas ele falava assim: 'Não, está tudo bem e não se preocupem comigo. Eu estou acostumado'. Mas o ator ficou morrendo de medo em ter machucado o Pelé e ficar marcado por causa daquela cena", completou Dedé, aos risos.

Assim como Dedé, Mussum e Zacarias também têm participações pequenas no filme. O momento de maior protagonismo dos dois é justamente na cena da briga.

Mussum ainda interpreta uma música 'Cardeal', uma homenagem ao personagem de Renato Aragão e ajudou na escolha da trilha sonora do longa.

CRÍTICAS AO FUTEBOL

Apesar de ser um filme de humor, 'Os Trapalhões e o Rei do Futebol' satiriza algumas situações do mundo da bola, como por exemplo os dirigentes gananciosos.

A ideia de nomear Cardeal (Aragão) como técnico do Independência surge após o presidente interino do time assumir. Ele decide escolher alguém pouco capacitado para o cargo para evitar que o time tenha sucesso, inibindo assim o retorno do antecessor.

O jornalista Nascimento é um dos que se opõe ao mandatário interino. Chega a declarar apoio a Cardeal como técnico e até sugere que o roupeiro vire o presidente se o Independência for campeão. Em uma das cenas, ele recebe por telefone uma oferta de suborno de um dirigente do Independência para 'pegar leve' nas críticas. Recusa e estampa como manchete do jornal a seguinte frase: "Vamos acabar com a corrupção".

"Os meus filmes tocavam o dedo na ferida, mas muito leve. Eu dava uma pincelada no assunto e saia fora dele. Não esfregava na cara aquele problema, não. Foi assim na Serra Pelada ['Os Trapalhões na Serra Pelada']. Eu queria levar mais entretenimento ao público", explicou para a reportagem Renato Aragão.

O filme levou oito semanas para ser finalizado. Lançado em 26 de junho de 1986, o longo ainda trazia a modelo Luiza Brunet, aos 24 anos, como 'mocinha' e atraiu 3.616.696 expectadores, sendo a 31ª maior bilheteria nacional e a 15ª maior de toda a filmografia de 'Os Trapalhões'.

OS TRAPALHÕES E O FUTEBOL

Apesar de só terem um filme com tema voltado ao futebol e a existência de poucos quadros no humorístico sobre o assunto, o grupo sempre foi fã do esporte.

Mussum (morto em 1994) era flamenguista e também corintiano, fruto do período em que morou e trabalhou na cidade de São Paulo. Renato Aragão é vascaíno. "Rapaz, não diz isso. Espera ele voltar para a Série A", brincou, aos risos, com a reportagem.

Já Dedé é são-paulino e até relembrou uma história nunca contada por ele. "Eu me emocionei muito quando encontrei o Leônidas da Silva, o criador da bicicleta. Eu estava com o circo em Santos e ele, já aposentado, viu o espetáculo. Ele gostou muito e me convidou para almoçar na casa dele. Foi muito emocionante. Você ter um ídolo que te convida para ir até a casa dele... Essa história e a vivência com o Pelé, um homem muito simples, me marcaram muito. Acho que antes os jogadores eram mais simples".

Apenas Zacarias (morto em 1990) não tinha clube de preferência. "Ele não dava muita bola. Nem falava sobre isso. Ele era ator, foi até premiado como ator revelação em 'A dama do camarote', em 1970. Gostava muito de música e de teatro", disse Dedé.

Passados 30 anos daquele filme, os dois remanescentes do grupo continuam ativos. Renato Aragão e Dedé terminaram há poucas semanas a gravação do filme 'Os Saltimbancos Trapalhões', um remake do longa de 1981 e que deve sair em janeiro. Em setembro deste ano, eles devem retomar o musical de mesmo nome com apresentações em São Paulo - a temporada anterior foi toda no Rio de Janeiro.

Dedé também terminou de filmar um longa com José de Abreu, cujo nome provisório é "Polidoro", e está em fase final de produção de 'O Shaolin do Sertão'.

ALGUMAS FRASES DO FILME

"Presidente tem de ser eleito. O senhor foi nomeado. Para mim não está com nada!"
Frase do jornalista Nascimento [Pelé] ao presidente interino do Independência

[Quer dizer que a imprensa vai me negar apoio?]. Eu não posso falar pela imprensa. Mas quanto a mim eu não lhe dou apoio nenhum!"
Frase do jornalista Nascimento [Pelé] ao presidente interino do Independência

"O senhor não é o presidente interino do clube? Se vira. O próximo jogo é domingo, não é?"
Frase do jornalista Nascimento [Pelé] ao presidente interino do Independência após ele demitir o técnico e consultar quem deveria nomear para o cargo

"Meu sonho de criança sempre foi jogar nesse estádio"
Frase do jornalista Nascimento [Pelé] ao visitar o Maracanã com Cardeal (Aragão)

"Vamos acabar com a corrupção"
Nascimento escreve isso para o jornal que trabalha após uma oferta de suborno

"Brasileiro é assim mesmo. Gosta de levar vantagem em tudo, certo?"
Cardeal após ser acertado por uma pedrada por um menino de quem acabara de tomar o estilingue (a frase brinca uma propaganda de cigarro feita pelo ex-jogador Gérson)

"Cardeal, você fez o gol que Pelé não fez"
Nascimento diz isso para Cardeal, que marcou um gol do meio de campo

TAÇA GUANABARA DE 1986

O Vasco corria atrás de um título estadual desde 1982. Em 1986, poucos acreditavam no time dirigido por Antônio Lopes. Isso porque ao lado do veterano Roberto Dinamite havia jovens como o atacante Romário, o meio-campista Mazinho e o zagueiro Donato.

Já o Flamengo tinha alguns remanescentes da equipe que ganhou tudo no começo daquela década, como o volante Andrade, e trazia jovens talentosos no elenco rubro-negro, como o lateral Jorginho e o atacante Bebeto.

Mesmo assim o time cruzmaltino levou a melhor. Com dois gols de Romário no segundo tempo, venceu por 2 a 0 e faturou a Taça Guanabara pela quarta vez na história.

Em agosto daquele ano, o Vasco disputou a taça do Estadual contra o Flamengo, mas após três jogos ficou com o vice. Empatou os dois primeiros e perdeu o último por 2 a 0.

FICHA TÉCNICA
VASCO 2 x 0 FLAMENGO

Data: domingo, 20 de abril de 1986
Local: estádio do Maracanã, Rio de Janeiro (RJ)
Público: 121.093 presentes
Renda: Cz$ 3.377.325,00
Árbitro: Luis Carlos Félix
Gols: Romário, aos 5' e aos 45' minutos do 2º tempo

VASCO: Paulo Sérgio, Paulo Roberto, Donato, Fernando e Lira; Mazinho, Gersinho (Geovani) e Josenilton; Mauricinho, Roberto e Romário. Técnico: Antônio Lopes

FLAMENGO: Zé Carlos, Jorginho, Guto, Aldair e Adalberto; Andrade, Valtinho e Gilmar; Bebeto, Chiquinho e Marco Antônio Rodrigues. Técnico: Sebastião Lazaroni



Fonte: ESPN.com.br