Presidente da Nissan no Brasil: 'Tomei a decisão, validada pela empresa, de sair do Vasco'

Domingo, 09/02/2014 - 12:40
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Num dia escaldante do implacável verão carioca, os diretores da Nissan chegaram para trabalhar e se depararam com uma ordem expressa: todos deveriam entrar numa van estacionada em frente ao prédio que abriga a sede da empresa, na Avenida Rio Branco, para... visitar o barracão do Salgueiro, na Cidade do Samba. A montadora, que está construindo uma fábrica em Resende (RJ), é a principal patrocinadora da vermelho e branco, uma das favoritas ao título do carnaval de 2014. As ações - tanto a viagem ao barracão como a parceria com a escola - tem como alicerce o inegociável amor de François Dossa, presidente da empresa no Brasil, pela festa. Um sentimento que está fazendo 30 anos. Foi no primeiro ano do Sambódromo que ele se apaixonou — pela Portela e, depois, pela Mangueira, que ganhou seu coração definitivamente. Frequentador das quadras de várias escolas, como a Beija-Flor — “O que eles fazem lá é mágico, lindo!” —, Dossa tem como grande preocupação a preservação do que faz o carnaval um espetáculo único. “Essa deve ser a prioridade. Porque só o Rio de Janeiro tem isso”.

Qual é o projeto da Nissan em relação ao carnaval?

Ter esse camarote na quadra tem sido muito importante. Convidamos funcionários da fábrica, fornecedores, autoridades. Todo mundo adora. No Rio de Janeiro, o carnaval faz parte da cultura da cidade. Morei em São Paulo, onde há sambódromo, carnaval, mas ninguém liga. Só as pessoas das comunidades das escolas. Aqui no Rio, todo mundo tem uma escola de samba. É muito forte. A empresa é nova aqui — tinha 200 pessoas até dois anos atrás, hoje tem 2 mil. Em termos de RH é uma energia muito boa, da Viviane Araujo, da porta-bandeira Marcella. Tudo isso fortalece a empresa, e o recado de sustentabilidade é muito importante para nós. Mas não queremos parar por aqui. Vai ser outra maneira de a Nissan trabalhar. A parceria será de médio a longo prazo.No Vasco também era (a Nissan era patrocinadora do clube, mas decidiu sair após o conflito dos torcedores em Joinville, na última rodada do Campeonato Brasileiro)... Sim, entramos para ficar quatro anos, mas aconteceram fatos inaceitáveis para nós, e saímos. No Salgueiro, vamos manter uma parceria a priori. Tomei a decisão, validada pela empresa, de sair do Vasco, porque a nossa imagem, o nosso nome estava ali, naquelas imagens que correram o mundo. Os clubes de futebol têm que respeitar o parceiro. O Salgueiro entendeu essa necessidade de respeitar muito bem.

O vice-presidente do Salgueiro foi assassinado. No que isso impacta o projeto da Nissan com a escola?

Você sabe mais do que eu. Então, vamos aos fatos. O vice-presidente do Salgueiro, Marcelo Tijolo, foi baleado no meio da rua, e morreu dias depois. Isso causou algum tipo de questionamento na Nissan? Na Nissan, talvez. Para mim, nenhum. Por quê? Porque não sei o que aconteceu, em primeiro lugar. Em segundo, porque não tínhamos qualquer contato com ele. Negociamos com outras pessoas no Salgueiro. Não fiquei com qualquer angústia.

A ocorrência com o vice-presidente não poderia gerar uma atitude semelhante ao acontecido no Vasco?

Para mim, foi totalmente diferente. A escola, até onde se sabe, não está ligada ao crime. É um mundo que eu conheço e, por isso, não tive essa angústia.

O investimento no Salgueiro vai continuar?

Vai.

Quanto a Nissan está investindo no patrocínio ao Salgueiro?

Três milhões de reais.

Como a empresa foi parar no carnaval?

O Carlos Ghosn, presidente mundial da Nissan/Renault, nasceu aqui e, apesar de viver no exterior, quer que a empresa seja agora brasileira. Quando ele me contratou, no fim de 2012, disse que os Jogos Olímpicos são importantes (a montadora é patrocinadora), mas o carnaval é ainda mais. Só que é um mundo complicado. Conheço, sei até onde posso ir, com quem posso me expor. Mas a empresa tem outras implicações. Ele insistiu, e eu sei que as escolas de samba não são como o mundo corporativo, têm outras realidades. Aí, o Salgueiro escolheu o enredo da sustentabilidade e, paralelamente, vem num processo de profissionalização interessante. Pensei: “Isso é para nós”. O carro elétrico e o projeto de emissão zero são muito importantes para a Nissan. Queremos tornar isso cada vez mais uma realidade. Seria um casamento perfeito.

Como foi a negociação do patrocínio?

Já conhecia a Regina (Celi, presidente do Salgueiro). Mas só conheci o Renato e a Márcia (Lage, carnavalescos) nesse processo. O Renato é doido, e eu gosto de gente doida. E ele também gostou de mim: “Nunca vi um francês que conheça tão bem o carnaval, que canta os sambas, etc”. E ele não tem muita paciência com quem não conhece. Então, nos demos muito bem. E aí casou tudo. Estamos muito felizes de participar desse carnaval do Salgueiro.

O senhor foi questionado sobre virar parceiro de escola de samba?

Sim. Por muita gente. Mas trabalhamos como fazemos com qualquer parceiro, com muito profissionalismo. Não fizemos diferente.

O enredo da Tijuca, com a homenagem a Ayrton Senna, não teria mais a ver com a empresa, especialmente pelo fato de ele ter corrido com motores Renault na Fórmula 1?

Não. Sustentabilidade é mais importante. Gostei quando o Renato disse que o Salgueiro quer mostrar o mundo que todos gostaríamos de deixar para os nossos filhos. Meu presidente tem isso muito claro. Somos uma indústria muito criticada, por causa da poluição. Só que temos uma solução de um carro que não polui nada, e o Brasil tem uma matriz energética limpa. Temos um legado, para os nossos filhos, de um carro limpo. Tudo isso é muito mais forte, achamos nós, do que o Ayrton Senna.

O patrocínio pode se ampliar para o carnaval todo, como fazem outras empresas associadas à Liga das Escolas de Samba?

Não pensamos nisso ainda. Mas não estou fechando porta alguma. Entramos no Salgueiro, nessa parceria que vai continuar.

O senhor, pessoalmente, gostaria que prosperasse para o resto da festa?

Gostaria que a empresa mantivesse um relacionamento forte com o carnaval. Nossa empresa quer ser vista claramente como a mais brasileira das japonesas e como uma empresa carioca. Se você não trabalhar com carnaval, é porque não entendeu nada. Mas tem muita gente que me pergunta sobre como esses mundos são diferentes.

O carnaval, o jogo do bicho, como conviver?

De fato, não é fácil. Tenho uma regra de conduta muito rigída. Tem coisa que não vou fazer nunca, gente que não vou frequentar nunca. São dois mundos diferentes que não quero necessariamente aproximar. Mas acho que o carnaval está evoluindo. Um dia, a coisa vai se aproximar melhor. No médio prazo, acho que a aproximação do mundo corporativo com o carnaval é uma tendência.

Mas muitas empresas entraram e saíram do carnaval, como a Vale com a Grande Rio, a Basf com a Vila Isabel. O que falta para que essas relações sejam mais duradouras?

Falta a escola de samba entender o que é uma parceria com uma empresa. O Salgueiro assinou um contrato com a gente, por iniciativa dele. Veio com uma iniciativa corporativa. Esse documento tem 27 cláusulas, nas quais o Salgueiro se compromete com várias coisas: mostrar um enredo sobre sustentabilidade; dar um camarote na quadra e levar passistas; dar 30 fantasias para a Nissan. Até agora, respeitou todas as cláusulas. Não sei sobre a experiência das outras. Mas se receberem o tratamento que estamos tendo, vão ficar.

Ainda há muito preconceito com o carnaval?

Muito. Tenho amigos, especialmente de São Paulo, que têm medo de ir. É um passivo de imagem.

O tamanho desse passivo está diminuindo ou ainda é um sonho muito distante?

Vou ser muito franco: não sei se tem que acabar. Se quisermos transformar as escolas de samba em empresas suíças, vamos perder a força, a comunidade se reunindo, vamos perder a alma do carnaval. Não se pode pasteurizar o carnaval. A vida é a vida, com todas as suas complicações. Tenho uma visão um pouco diferente. Acho melhor tentar conviver. Tenho uma filosofia e uma ética muito claras. Vou trabalhar do meu jeito; se não puder ser assim, não trabalho. Mas não vou querer mudar o carnaval, transformá-lo, com medo de perder o que faz o carnaval ser essa coisa única, que só no Rio de Janeiro existe. O que sinto quando vou a ensaios como o da Beija-Flor em Nilópolis é maravilhoso. Isso é o que não se pode perder, é o que faz o Rio e o carnaval serem uma coisa única.

Mas a Beija-Flor tem o Anísio Abrahão David. Como coexistir com esses personagens?

Como empresa, não convivo. Não dá. A ética não é a mesma. Como pessoa física, também não quero aproximação. Mas vou na Beija-Flor, acho uma escola linda, fantástica. Uma vez, estava lá e vi uma pessoa guardando uma arma num armário. Não posso apoiar esse tipo de comportamento. Mas se eu quiser ver a beleza daquela escola, terei de aceitar que aquilo existe. E não tenho medo; sei que faz parte.

Mas e num encontro com o Anísio? Se ele estender a mão, o que o senhor faz?

Ué, shake hands. Isso é muito óbvio na escola de samba. Mas se adotar a postura radical para tudo, você não vai cumprimentar ninguém.

No Brasil essas fronteiras são tênues demais ou é assim em outros países?

Aqui é mais, principalmente no Rio de Janeiro, onde todo mundo convive. Escola de samba é um bom exemplo disso. Toda a sociedade está lá representada. Mas a vida é isso, a diversidade, com todo mundo querendo conviver da melhor maneira possível. Mas de novo: tenho minha ética, e determinadas coisas não vou fazer, jamais. Ainda que não me impeça de gostar de carnaval, de conviver no mundo do carnaval, sabendo como ele é.

O carnaval não é pouco explorado como atividade econômica e turística e como gerador de emprego e renda? A Cidade do Samba e a Marquês de Sapucaí passam a maior parte do ano fechadas, sem atividades...

Não. Acho que é assim mesmo, e, se tentar mudar muito, podemos perder essa coisa louca, maravilhosa que é o carnaval. O tal “trabalhar um ano inteiro por uma hora e vinte minutos”. Adoro isso.

Mas e a falta de atividades nos equipamentos públicos?

Isso é outra coisa, que me incomoda no Rio de Janeiro inteiro. Eu vim de Paris, onde o Moulin Rouge existe há 130 anos e mantém atividades constantes, com várias filiais. Aqui, o que se faz com os turistas que chegam, por exemplo, nesses transatlânticos aqui no porto? Não tem uma casa de shows de samba. A Cidade do Samba é do lado do porto, basta atravessar a rua! Mas aí é um problema do prefeito. A prefeitura, que tem uma ambição grande de modificar a cidade, é que tem de promover essa mudança, botar o carnaval nessa agenda, talvez em parceria com o setor privado. Mas não espero que essa organização venha das comunidades das escolas. Não se pode padronizar as escolas, tirar delas o jeito artesanal e espontâneo que temos hoje. Se tirar isso, tira a alma. Tem de preservar as famílias que estão nas escolas, com todas as gerações presentes. Na França, não existe esse lugar. As mudanças têm de ser feitas com cuidado, porque há muito para perder. Tem muita gente que não entende nada e acha que o carnaval é só uma
coisa turística. Esses não veem todo o resto que acontece ao longo do ano, e que estrutura as famílias e o relacionamento das gerações por aqui. Meu grande medo da globalização é esse. O Brasil é um país único, com cultura para todo lado, Parintins (fui três vezes, amo), as festas juninas do Nordeste. Esses eventos fazem dos brasileiros um povo totalmente diferente, único. Não pode mudar o jeito como os responsáveis por isso se organizam.

Escola de samba, além do que falamos, é um lugar bem pouco sustentável, não?

Funcionários não têm relações trabalhistas formais, trabalham em condições precárias, com materiais como penas de animais...

Como conviver com isso?

Revolução só existe na França. Aqui, são evoluções. Ajudamos o Salgueiro em reciclagem e na proteção aos trabalhadores do barracão. Havia pessoas trabalhando sem luvas na serralheria! Imagina! É uma loucura! Funcionários da Nissan estão no barracão ensinando os trabalhadores do Salgueiro. Quando visitamos o barracão, notamos essa necessidade. Mas o processo deles é muito parecido com o nosso. A construção de um carro alegórico e de um automóvel tem muitas semelhanças. Começa com o design, passa para a engenharia, que diz se dá para fazer, e dali para a produção. A única diferença é que na nossa linha de produção o operário é fixo e o produto passa. Na escola de samba, os carros são fixos no barracão, e os funcionários vão mudando de lugar. Mas os dois trabalham com data, prazo — no caso da escola, o carnaval.

Fonte: O Globo

Nota da NETVASCO: Até então, executivos da Nissan vinham insistindo na versão de que a decisão de romper o contrato havia sido da matriz da empresa, no Japão (clique aqui para saber mais).