Completando 70 anos, Tostão relembra passagem pelo Vasco, onde encerrou sua carreira

Quarta-feira, 25/01/2017 - 10:02
comentários

Tostão não põe chuteiras e os pés dentro de um gramado há 45 anos. Nas últimas duas décadas traduziu em crônicas semanais o melhor e o pior do futebol brasileiro e mundial. Memórias, devaneios, análises, poesias e críticas para além de um jogo de futebol. Gênio para Pelé, melhor atacante do mundo - maior que o Rei - em 1970 para Gerson, Tostão completa seus 70 anos com aqueles pés - os mesmos que encantaram Minas, o Brasil e o mundo - bem no chão.

- Fui um grande jogador, mas estou num segundo ou até terceiro escalão do futebol.

É o que diz Eduardo Gonçalves de Andrade. O ex-jogador, de carreira curta e marcante de 1962 a 1973, é colunista e escritor desde 1996.

Com livro novo lançado no fim do ano passado, Tostão está de férias neste aniversário - "vou por aí, em alguma praia", disse, discreto, sem revelar o local do descanso. Por telefone, queria papo ligeiro, máximo de 45 minutos, mas durou 1h30. O início, a carreira, a consagração, a dor e o afastamento, o mundo acadêmico, as polêmicas e o retorno como cronista. Tostão falou de tudo um pouco. O GloboEsporte.com publica nesta terça, na véspera dos 70 anos, a primeira parte da entrevista. Fala sobre a carreira de Tostão, ídolo do Cruzeiro e da Seleção. Um Doutor honoris causa em elegância e fino trato com a bola. Confira.

GloboEsporte.com: Você sempre aparece na lista daqui e de fora como um dos maiores de todos os tempos, mesmo jogando apenas até os 26 anos. Sua carreira poderia ter sido ainda mais brilhante?

Existe a possibilidade de eu ter crescido ainda mais no futebol se não tivesse parado cedo. Um jornalista britânico escreveu um dos maiores elogios que recebi. Ele disse que eu era o jogador do presente, na época, lá nos anos 1970, e o jogador do futuro, que poderia ser na Copa de 1974 o protagonista da Seleção, já que o Pelé não estaria. Eu fiquei satisfeito, mas acho que nem tanto. Sem falsa modéstia, eu fui um grande jogador, excepcional, mas, saindo de mim e virando um analista de mim mesmo, não acho que estou no nível dos maiores da história. Não me comparo nunca a um Ronaldo, a um Neymar, ao Romário, ao Zidane, essa turma que deve chegar a uns 30. Essa é a turma de primeiro nível. Eu estou abaixo deles.

Pela qualidade do seu futebol ou pelo período curto de carreira?

Pelo futebol mesmo. Se tivesse mais uns cinco ou dez anos de carreira acho que não mudaria muita coisa. Talvez eu tivesse mais chance de me destacar mais porque eu fui, durante muitos anos, até 1969, quando chegou o Saldanha na Seleção, um eterno reserva do Pelé. O Saldanha me colocou para jogar com o Pelé e foi o melhor momento que eu tive na Seleção, nas eliminatórias da Copa de 1970. Zagallo voltou a me colocar na reserva, mas próximo da Copa ele mudou de opinião e viu que eu poderia ser centroavante, improvisado, e acabei jogando. Em 1974, sem o Pelé na Seleção, eu poderia jogar na posição que eu atuava no Cruzeiro, mais recuado. Tanto que na Copa Independência, em 1972, teve a final entre Brasil e Portugal. Jogamos eu e o Leivinha, que foi o centroavante, comigo mais recuado. Nessa posição eu tinha mais chance de aparecer mais, porque era a posição que eu jogava no Cruzeiro. Nessa posição eu estava sempre com a bola. Eu vinha receber, trocava passes e aparecia na frente para fazer o gol. Eu tinha muito mais chance de fazer gol jogando assim do que jogando na frente, como foi na Copa, de costas para o gol. Joguei fora da minha posição, mas foi necessário. Então se eu jogasse mais uns cinco ou dez anos, talvez tivesse me destacado mais. Mas não acho que isso aumentaria o nível de qualidade que eu tive. Fui um grande jogador, mas repito, num segundo escalão ou até terceiro. Não tenho nenhuma ilusão. Tenho certeza absoluta que eu não tive a qualidade que tiveram os grandes jogadores.

A sua carreira foi brilhante na Seleção e no Cruzeiro. No livro você conta que poderia ter jogado no Milan. Fez falta? Ainda não era exatamente um sonho dos craques da época.

Não era um sonho. Fui convidado para jogar na despedida do goleiro russo Yashin, em Milão. Era seleção do resto do mundo contra a Itália em 1971. Na época era proibida a importação de jogadores na Itália. Mas havia uma conversa de que isso seria movido. Recebi um convite da diretoria do Milan para almoçar na concentração junto com os jogadores. Lembro até que todos eles tomaram um copo de vinho, que era hábito. Eles disseram que tinham muito interesse em me contratar e que se saísse a liberação eles fariam uma proposta ao Cruzeiro. Fiquei feliz pelo reconhecimento. Poderia ser uma chance ótima. Mas não era igual a hoje, que os jogadores ficam doidos para sair. Mas eu via aquilo como uma coisa positiva. Só foram sair mesmo jogadores daqui a partir de 1980, com a turma do Cerezo, Falcão, Zico. Se essa liberação tivesse acontecido dez anos antes, eu teria jogado na Itália, e a vida poderia ter mudado totalmente.

Você jogou muito sem a bola em 1970. Era percepção tática do jogo, leitura de jogo?

Na Copa ficou marcado isso, de eu jogar sem bola. Peguei pouco na bola, gostaria de pegar muito mais nela. Pegava pouco porque eu jogava de costas para o gol, entre os zagueiros. Quando o Pelé ou o Jairzinho pegava na bola eu saía dois metros do zagueiro, recebia e tocava. Tudo de primeira. Isso foi importante para o time, mas apareci pouco. A não ser em lances isolados. A jogada contra a Inglaterra, os dois passes contra o Uruguai. Quando vejo o jogo final contra a Itália, eu pego pouco na bola. Gente mais jovem deve ver o jogo e pensar: "Esse Tostão não era grandes coisas, não" (risos). Nós combinamos contra a Itália o seguinte. Eles jogavam com uma linha de quatro e um zagueiro de sobra. Esse líbero saía toda hora na cobertura. Nós combinamos que eu jogaria entre os quatro e o líbero para evitar que ele saísse. Isso foi importante para o time, mas com isso eu pegava pouco na bola.

No gol do Carlos Alberto, você rouba a bola junto com o Everaldo e depois, lá na frente, aponta para o Pelé a chegada do Carlos Alberto...

É um dos lances que eu tenho mais orgulho porque fiz a cobertura do Everaldo na intermediária do Brasil, toquei para o Piazza, depois a bola foi para o Clodoaldo, e aí começou o lance. E quando a bola chega no Pelé eu já estava em cima dos zagueiros gritando para o Pelé: "Olha o Carlos Alberto!" Naquele caso eu não precisava, porque o Pelé enxergava muito. Mas mesmo assim gritei. Era uma jogada combinada antes do jogo. Foi uma vitória tática também. Nós sabíamos que o Facchetti, que era o lateral da Itália, ia atrás do Jairzinho onde fosse, ele fazia marcação individual. Então foi combinado que o Jairzinho iria para o meio, levaria o Facchetti, e o Carlos Alberto passaria. Foi o que aconteceu no quarto gol.

Aquele lance contra a Inglaterra, marcante pela caneta no Bobby Moore e o gol de Jairzinho, sintetiza o futebol do Tostão?

Esse lance tem uma coisa importante. Antes da jogada, olhei para a lateral e vi que o Roberto, centroavante do Botafogo que era meu reserva e que o Zagallo, técnico dele no Botafogo, gostava muito, estava se preparando para entrar. Ele fazia muito gol. Eu vi que eu ia sair. Aí, o que aconteceu? Essa imagem do Roberto lá me deu uma coragem descomunal de tentar uma jogada decisiva. Quando a bola veio, tentei chutar para o gol, a bola voltou, tentei o drible, eu queria o gol. Joguei a bola por entre as pernas do Bobby Moore e queria ir para o gol. Mas quando fiquei cercado, tinha uma jogada que eu fazia muito no Cruzeiro, o hábito de virar o jogo mesmo que não visse um companheiro, porque a chance de achar alguém livre é grande. Então rapidamente mandei a bola para o outro lado e caiu no pé do Pelé. E ele, com aquela magia toda, quando o zagueiro chegou, rolou para o Jairzinho fazer o gol. Inclusive depois eu saí do jogo porque ele (Roberto) já tinha assinado a súmula e não podia voltar atrás. Quando chegamos no ônibus, todo mundo me olhava. O Zagallo ria. Eu pensei: "Agora eu não saio mais."

Você se sentiu envergonhado ao colocar uma coroa para um fotógrafo de jornal após vencer o Santos, de Pelé, na final da Taça Brasil de 1966. Por quê?

Eu me senti um usurpador do trono. O que aconteceu no jogo do Cruzeiro contra o Santos em São Paulo foi uma virada de 3 a 2, depois de o Cruzeiro ter vencido o Santos por 6 a 2. Eu estava no meu auge, e o Pelé já dava sinais daquele período de 1965 a 1970, que não estava com o mesmo vigor físico, não jogava muito bem todos os jogos, apesar de continuar o melhor de todos. Depois do jogo, o fotógrafo chegou lá com uma coroa de papel, botou na minha cabeça e bateu a foto. No outro dia saiu no jornal, primeira página: "Tostão, o novo Rei." Nossa, quando eu vi aquilo, fiquei chateado, me senti um picareta. Eu tinha consciência de que era distante de uma coisa muito grande, um absurdo aquilo.

Você conta no livro que, pelas condições da lesão no olho, se continuasse a jogar perderia noção de profundidade, jogaria como "um perna de pau". Pensou em continuar ou também influiu certa preocupação de ficar a imagem do grande jogador?

Um médico recomendou que eu não jogasse mais porque havia o risco de eu levar outra bolada e ter mais problemas no olho. Isso aí já era o bastante para eu parar de jogar. Eu não tinha opção, não poderia ir contra o médico. Claro que ele falou: "O risco é seu." Esse é o ponto principal. Tive lesão no olho, e, para a gente ter a visão de profundidade, a gente precisa ter a conjunção dos dois olhos. Então, numa bola lançada com muita velocidade, eu teria grande dificuldade de dominá-la porque a minha visão central do olho que foi operado estava bastante prejudicada. Então, se eu quisesse jogar, eu não teria condições de jogar como eu jogava antes. Então foram duas coisas que me fizeram parar de jogar: isso foi recomendado, e se eu continuasse jogando não teria as mesmas condições . Isso foi determinante para encerrar a carreira aos 26 anos, precocemente. Fiquei chateado. Mas ao mesmo tempo, pelo fato de eu ter apenas 26 anos e ter feito curso científico, eu já podia fazer vestibular. Fiz vestibular e entrei para a faculdade de medicina.

A sua saída do Vasco e a despedida do futebol te deixaram magoado? À época, dirigentes ficaram ressabiados, desconfiavam que você e o Cruzeiro agiram de má-fé...

Quando fui para o Vasco, fui examinado por três médicos escolhidos por eles, porque eu tinha tido o problema na retina antes da Copa de 1970. Jogava normalmente desde a Copa, joguei dois anos sem problema nenhum. Para mim já estava tudo superado. Todos os médicos me aprovaram. Mas de repente voltei a ter problemas, fui reoperado, e o médico me falou que eu não deveria jogar mais. O Vasco ficou desconfiado de que houve alguma coisa, mas sem razão nenhuma, eu fui examinado pelos médicos. Isso me deixou muito chateado. O Vasco, para dar satisfação pelo prejuízo que teve, não pelo dinheiro que me pagou, mas pelo dinheiro que pagou ao Cruzeiro pelo meu passe (Nota da redação: a transação, à época, correspondia a quase US$ 600 mil e era recorde na história do futebol brasileiro), o Vasco tentou reclamar na Justiça. Fiquei muito chateado porque ficou uma desconfiança de que eu poderia ter enganado o Vasco, e isso me magoou tanto. Mas hoje tento me colocar na posição do presidente do Vasco tentando justificar o investimento que ele tinha feito e não deu certo.

Com qual jogador gostaria de ter jogado e não jogou?

Joguei com os maiores jogadores da história. Pelé, Gerson, Rivellino, Jairzinho, Carlos Alberto. Joguei com o Dirceu Lopes no Cruzeiro. Eu tinha uma idealização assim de jogar com o Di Stéfano porque o meu pai falava muito do Di Stéfano. Meu pai falava que depois do Pelé foi o maior de todos. Joguei também com o Garrincha, mas o Garrincha em final de carreira. Eu começando, ele terminando. Em 1966 eu estava lá na Copa, mas foi o ocaso do Garrincha. Tinha a genialidade, os dribles. Teve um jogo-treino contra um time da Suécia. O Pelé no meio, o Garrincha na ponta, e o Garrincha driblava tanto o sueco, mas tanto... Era uma coisa impressionante. E foi o jogo que o garantiu na Copa. O que na verdade foi um erro, ele driblava, mas não tinha mais a velocidade. Para exibição, ainda era espetacular, mas para o jogo, com marcação dura, não tinha mais condição.

Você volta e meia desfaz alguns mitos do futebol, como a visão romântica de que jogadores tinham mais amor à camisa, eram mais profissionais. Não era nada disso?

É muito comum, quando ando na rua, as pessoas falarem: "Ah, na sua época o jogador tinha mais amor à camisa." Na verdade era o seguinte: os jogadores da minha época, e o Cruzeiro era exceção, eram profissionais já, tinham contrato, recebiam, não tanto quanto hoje, infinitamente menos obviamente, mas não se preparavam, não treinavam direito, viviam muito nas baladas, nas orgias. Quando fui para o Vasco, concentração era lugar de dormir e recuperar o sono, por causa das noitadas. Passavam 24 horas dormindo antes do jogo. Então os jogadores não se preparavam como hoje. Hoje, além de serem fiscalizados, são muito mais profissionais. Claro que de vez em quanto tem jogador que vai para a balada, que não se cuida, mas no passado era habitual. Jogador que ia encontrar uma prostituta de madrugada em dia de jogo, um monte de histórias assim. Essa coisa de que o jogador tinha mais amor à camisa do que hoje é um pouco de folclore, da visão romântica do futebol.

Você já recebeu convite para ser diretor do São Paulo e da Seleção e ser técnico do Cruzeiro. Nunca teve vontade de voltar ao futebol?

Os convites aconteceram quando eu já estava trabalhando como colunista. Na CBF, quando o Leão saiu (como treinador), o Ricardo Teixeira me convidou para ser o diretor de futebol. Podia ter sido campeão do mundo como diretor em 2002, mas eu não aceitei porque estava bem como colunista. Segundo porque eu era muito crítico ao Ricardo Teixeira e à CBF, e eu ser o diretor seria um cargo de confiança, eu não me sentiria bem de jeito nenhum em aceitar esse convite. Depois eu tive o convite para ser técnico do Cruzeiro, fui sondado, mas eu não queria de jeito nenhum ser técnico, não tive aspiração de ser técnico, ter uma vida de técnico, não me interessava. E também fui sondado para ser diretor do São Paulo, também durante o período em que fui colunista.. Não pensei porque estava bem como colunista, profissionalmente não me seduzia, apesar de que eu tivesse escolhido ser técnico eu ganharia uma fortuna. Qualquer técnico hoje, mesmo com tantas demissões, ganha uma nota.

Qual foi a última vez que jogou uma pelada?

Depois que eu parei de jogar pelo problema na vista, eu não pude nem jogar pelada. Não pude jogar profissionalmente, muito menos pelada, onde se toma bolada toda hora. Nunca mais joguei bola. O único esporte que eu pratico é a caminhada. Se você contar pelada antes de eu ser profissional... porque eu com 16 anos já era profissional. Então minha última pelada foi antes dos 16 anos. Estou fazendo 70, tem mais de 50 anos (risos). Quando eu era menino, adolescente, eu não saía do campo. Era bola todo dia.




Fonte: GloboEsporte.com (texto), Reprodução Internet (foto)