Martín Silva relembra história do Uruguai de 1950 e diz que Barbosa foi injustiçado

Sexta-feira, 24/04/2015 - 10:11
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Quando uma pessoa esbarra em outra na rua e se desculpa na língua de Martín Silva, a resposta é a mesma que o uruguaio tem dado nos momentos decisivos: “No pasa nada.” A expressão usada para dizer que está tudo bem serve também para reforçar a segurança que o goleiro do Vasco transmite aos seus companheiros e torcedores às vésperas do primeiro jogo da decisão do Campeonato Carioca, neste domingo, contra o Botafogo, às 16h, no Maracanã.

Embora a data coincida com a comemoração do Dia do Goleiro (26 de abril), Martín Silva tem sido celebrado desde que manteve o zero no placar nas duas semifinais com o Flamengo. O número 1 e a responsabilidade que carrega às costas são uma distinção que o uruguaio troca pelo triunfo coletivo.

— É sempre importante, na minha posição, ter boas atuações, principalmente nos jogos decisivos, mas minha contribuição é a mesma dos outros dez jogadores e dos que ficam no banco e podem decidir — disse o goleiro, de 32 anos, que chegou a São Januário no início de 2014.

Ao andar pelo clube, ele encontrou na sala de troféus e nas fotos dos heróis o complemento das histórias de sua infância. A lendária conquista uruguaia na Copa de 1950, transmitida oralmente através de gerações como um traço do caráter nacional, também revela muito da sociedade brasileira, que crucificou simbolicamente o goleiro Barbosa nas traves aonde Ghiggia fez o gol do título. Com a mesma cruz vermelha que o vascaíno Barbosa levava no peito, Martín Silva defende um clube com a vocação da reconstrução.

— Aprendi a história de 1950 no Uruguai, desde pequeno. Todo jogador conhece. Depois, aprendi também o quanto o futebol é injusto — disse, ao citar a presença de Barbosa e de seu nome em todas as galerias e listas dos grandes campeões vascaínos. — Em todas as paredes, vemos o nome dele como um ganhador de títulos.

Com as cores do Uruguai e o desenho cruzmaltino, a camisa de goleiro do Vasco estampa o orgulho e o desafio de Martín Silva. No meio da imensidão azul celeste, a faixa diagonal branca serve como uma ponte para completar a travessia.

— O elenco do ano passado tinha jogadores mais renomados, e o atual foi apontado como uma aposta, mas, até agora, a campanha é a mesma — disse, ao lembrar que o Vasco perdeu o título estadual do ano passado após dois empates com o Flamengo. — Agora é o Botafogo que tem a mesma vantagem. Temos que dar um passo além do que fizemos no ano passado.

Clube de tradições cristãs e democráticas, com portas abertas para acolher as diferenças, o Vasco se prepara para a decisão como quem busca um acerto de contas com a própria história. Se o fato de chegar à final só sacia quem cultiva a obsessão pelo maior rival, resta pôr fim ao jejum que anuncia a purificação. Sem jamais ter vencido o Botafogo nas quatro decisões do Carioca entre os dois clubes (1948, 1968, 1990 e 1997), o Vasco precisa, enfim, superar o adversário para recuperar o título que não conquista desde 2003.

— Ficamos felizes pela vitória sobre o Flamengo, mas foi só um passo no objetivo, que é o título. Fica na história quem ganhou a final e não a semifinal — disse, contrariando o discurso oficial de que a última vitória já fora uma conquista à parte.

Apesar da lucidez e da personalidade de seu goleiro, o Vasco troca as manifestações individuais pelo coro que reforça a unidade. Por mais que o técnico Doriva tenha ideias próprias, e bem-vindas à renovação do futebol brasileiro, seu time se comporta à imagem e semelhança de uma diretoria que só abre os portões do clube para as câmeras e microfones depois de encerrados os trabalhos de campo. Bem fechado na defesa, à espera das bolas paradas para bombardear os rivais, o Vasco voltou a ser temido pela força do jogo aéreo e do alinhamento político com a Federação.

VICE CANTA VITÓRIA NO TJD

Diante da expectativa pelo julgamento de Bernardo e Guiñazu, na próxima terça-feira (dia 28), referente à expulsão de ambos no clássico com o Flamengo ainda na Taça Guanabara, o vice jurídico, Paulo Reis, já canta vitória no mesmo tom que embalava as conquistas vascaínas de outrora, seja nos gramados ou no tapete verde dos tribunais:

— Eles serão absolvidos. Podem confiar no nosso taco. O respeito voltou.

Internamente, a autoridade que acabou sendo vista como autoritarismo, e ensejou uma série de ações judiciais contra o clube na passagem anterior do atual comando vascaíno, ainda é recebida como proteção pelos jogadores.

— Não é que a imprensa nos incomode, mas o treino fechado torna o ambiente mais íntimo, e a gente fica mais solto. É importante trabalhar detalhes que podem decidir um jogo e o campeonato — disse Martín Silva.

Num futebol brasileiro degradado em seus princípios básicos, sejam técnicos ou éticos, a transferência de responsabilidade repete a pobreza do jogo em que um lado se livra da bola à espera do erro alheio. Quem nunca se valeu do jogo aéreo e das boas relações nos bastidores que atire a primeira bola na área adversária. Martín Silva sai bem do gol para afastar o perigo da intolerância e chutar para cima a bola do futebol carioca:

— Esperamos que seja uma grande festa, mesmo que no fim apenas uma torcida possa comemorar. Quem perder tem que saber que fez sua parte. O jogo acaba, e a vida continua.

Em bom “portunhol”, não passa nada. Ao contrário da expressão, que no Brasil também significa fechar o gol, Martín veste a camisa de Barbosa para mostrar que tudo passa. Do papel de algoz, o Uruguai oferece a redenção ao goleiro vascaíno.

Fonte: O Globo Online