Felipe fala sobre passagem pelo Vasco, títulos e relação de amor com o clube; veja vídeo
Sexta-feira, 27/08/2021 - 07:54
The Players' Tribune Brasil @TPTBrasil
Felipe se sente privilegiado.

Entre os milhões de craques que vestiram a camisa do clube, o Maestro é o mais vitorioso da história do clube.

Felipe reflete sobre o início no Vasco, os títulos e sua relação de amor pelo clube que o criou.

Em parceria com @sportingbetBR.



Fonte: Twitter The Players' Tribune Brasil


O Sonho

Ontem fui dar aquela conferida nas redes sociais antes de ir pra cama e tinha um áudio de um torcedor do Vasco que me comoveu. Ele estava muito emocionado, muito mesmo, e queria só agradecer por eu ter respondido uma mensagem anterior dele. Dizia como tinha sido importante, deixado ele feliz. Me emocionei também e fiquei pensando: Caraca, olha as coisas simples e profundas que o futebol proporciona pra gente.

Até demorei pra pegar no sono, mas, quando adormeci, tive um sonho bonito à beça. Era São Januário lotado. Nosso caldeirão entupido de cruzmaltinos, gente pendurada em refletor, marquise e até no placar atrás do gol.

Só que fazia um silêncio absurdo. Silêncio total. No nosso banco estavam Roberto Dinamite, Barbosa, Romário, Edmundo, Bellini, Juninho Pernambucano, Mauro Galvão, Vavá, Ademir e Danilo Alvim. No banco dos visitantes tinha Paulinho da Viola, Fernanda Abreu, Camila Pitanga, Roberto Carlos, Teresa Cristina, Paulo Coelho, Chico Anysio, Pelé e Martinho da Vila.

Vai vendo que doideira. Todo mundo vestindo a camisa branca do Vasco.

Aí, no centro do campo, estava eu sozinho. Eu me via de longe, como se estivesse na arquibancada com a galera. Estava segurando um microfone, apoiando o pé esquerdo numa bola e vestindo a camisa preta que a gente usou na final do Mundial contra o Real Madrid, em 1998. Lá de longe eu via direitinho o número 6 nas minhas costas.

Nunca fui ligado nessas paradas de numerologia, mas ali, dentro do sonho, umas coisas iam se conectando e me ajudando a pensar na história bonita que eu tive no Vasco. Tudo em torno do 6. Sei lá por que… Sonho é sonho.

Por exemplo, eu comecei no Vasco quando tinha seis anos de idade. No futsal. Eu já era vascaíno, meu pai também, alucinado pelo Vasco. Eu era uma criança que vivia na rua jogando bola lá em Higienópolis, zona norte do Rio, onde nasci e me criei. Nada podia ser mais importante pra mim do que jogar bola.



Meu pai achou que eu tinha jeito pra coisa e me levou pro Vasco. Nessa mesma época, meus pais se separaram. Ficou tudo bem, eles continuaram amigos, mas foi cada um morar num canto, e eu era só uma criança de seis anos. E, por mais que separação seja algo complicado para os filhos, a lembrança que eu tenho é de uma coisa boa, olha que curioso. Porque não tive sensação de perda. Pelo contrário, naquele momento da minha vida, eu sentia como se estivesse ganhando algo. Ganhando uma rotina nova em casas novas — uma delas o Vasco, que me acolheu e ainda me presenteou com um irmão novo, o Pedrinho, meu melhor amigo da vida toda.

Nós dois começamos juntos e seguimos sempre juntos. A diferença é que eu cansei de dar assistência pra ele fazer gol. E pago um jantar pra quem achar um vídeo do Pedrinho me dando uma assistência. Não existe. Mas irmão a gente ama apesar de tudo, é ou não é?

Mais seis anos pra frente, aos 12, nós fomos pro futebol de campo. Nem posição a gente tinha. Daí o Pedrinho falou:

— Vou de meia-esquerda.

— Então eu vou de ponta-esquerda, porque a gente não pode disputar posição, temos que jogar juntos.

Só que tinha muito ponta, então o treinador me colocou de lateral-esquerdo e eu acabei ficando. Não deixei o salão. Eu treinava campo de manhã, ia pro colégio à tarde e voltava à noite pro futsal. Lembro que para entrar no Vasco a gente passava pelo portão principal e, em seguida, pelo campo. Às vezes os profissionais estavam treinando. Mauricinho, Mazinho, Geovani… Eu parava na grade, ficava olhando e pensando: um dia eu quero estar aí com esses caras.



Ou seja, eu passei mais tempo da minha vida dentro do Vasco, a minha terceira casa, do que na casa do meu pai ou da minha mãe. O Vasco realmente me formou como homem. E como jogador, claro. As duas coisas caminharam juntas.

Eu vinha do futebol de rua, onde você precisa levar a bola pra calçada, driblar árvore, cachorro, improvisar. No futsal do Vasco fui aprimorando. Me ajudou no drible, no passe, na tomada de decisão, a pensar mais rápido que os outros, noções de espaço, de marcação. Depois consegui levar tudo isso pro campo.

Para alguns jogadores essa adaptação não rola. O Vander Carioca, por exemplo, craque da seleção brasileira de futsal. A gente jogava junto também. Ele era um monstro, se tornou referência internacional, marcou época... Mas se você visse o Vander jogando no campo diria que é outra pessoa. E não é. O esporte é que é outro. Futsal é um, futebol de campo é outro. Mas eles se complementam.

Hoje em dia a garotada começa direto no campo, categoria sub-7, sub-8. Eu acho um erro. No campo, uma criança com mais força física acaba jogando melhor, porque põe a bola na frente e sai correndo. Além disso, o campo é muito grande. O garoto que ainda está um pouco abaixo vai tocar no máximo três vezes na bola durante um jogo e ficar frustrado. No futsal, todos participam. São quatro contra quatro na linha, todo mundo tocando na bola, aprimorando a técnica e evoluindo. Por isso, meu conselho é pra que todas as crianças comecem no futsal. E já que entrei nessa dividida, vou dar um conselho pros pais também: deixem seus filhos se divertirem, pelo amor de Deus! São só crianças!

O comportamento de alguns pais hoje é inadmissível. Cobram demais. Xingam, reclamam, gritam com meninos de sete, oito anos. Muita gente espera que aquele garoto mude a vida da família, tudo bem, compreendo essa realidade, mas a pressão pode estragar tudo. O meu pai me levava pra treinar e jogar e não ficava gritando "Felipe faz isso, Felipe faz aquilo". Ele sempre foi muito tranquilo. Se eu acertasse ou errasse, dizia:

— Está bom, filho. O que importa é você se divertir. Tá feliz? Então continua. Se não estiver, para.

Essa tranquilidade do meu pai me ajudou a evoluir como jogador. E a visão do Vasco também, de entender na época que futebol de base é pra formar talento, não pra ganhar títulos. Essa liberdade para improvisar era tamanha que a gente chamava o Vasco de "escola do drible".



Eu tenho dois filhos, um de 16 e outro de 12 anos. Eles começaram com sete, levam jeito, querem ser jogadores profissionais. Nunca botei pressão. Imitei meu velho… Sempre deixei que eles brincassem, só isso. Até pensei em colocar uma câmera escondida filmando o comportamento dos pais e depois fazer um documentário. Quem sabe assim eles se tocam.

Pra que antecipar a parte pesada da carreira? Mais pra frente, no sub-20, a pressão já vai ser gigantesca e aí não tem mais jeito de contornar. São muitas incertezas: se o garoto vai vingar ou não, se vai continuar em time grande ou vai pra um menor, se vai conseguir um contrato e melhorar a vida da família, se é mais negócio largar o futebol e terminar os estudos… Eu sou grato por não ter passado por isso. Me deixaram jogar bola, que era o que eu amava fazer. Simples.

Eu estava feliz de poder me divertir defendendo meu time do coração. Era isso que importava.
- Felipe


Quando eu me tornei profissional, fui jogar no Maracanã num Vasco x Botafogo com a cabeça do moleque que driblava árvore na rua. Eu estava feliz de poder me divertir defendendo meu time do coração. Era isso que importava.

É engraçada a história da minha chegada no profissional do Vasco e a escalação pra essa partida contra o Botafogo. Eu era reserva dos juniores e tive a chance de começar um jogo porque o nosso titular recebeu o terceiro cartão amarelo. O filho do Antônio Lopes, então treinador do profissional, foi assistir a essa partida. Joguei muito bem. Acontece que, na mesma semana, o Lopes ficou sem lateral-esquerdo no profissional. Com o titular suspenso e o reserva machucado, chamaram os laterais dos juniores, o Bill e eu, que era reserva dele.

— Ei, vocês dois, vão lá que estão precisando de lateral-esquerdo no profissional.

Nós fomos. Na hora do coletivo, o Lopes deu o colete de titular pra mim e o de reserva pro Bill. Achei estranho, mas falei baixinho comigo mesmo: É a oportunidade da minha vida. Arrebentei nos treinos da quinta e da sexta-feira e estreei no domingo. Maracanã, Vasco 2 x 1 Botafogo, 3 de novembro de mil novecentos e noventa e... SEIS! Só muito tempo depois eu fiquei sabendo por que o Lopes me deu o colete de titular no treino, mesmo eu sendo o reserva dos juniores. É que o filho dele, que tinha me visto jogar, falou pra ele durante o jantar:

— Pai, eu vi uma partida dos garotos e o reserva é melhor que o titular.

Resultado: em uma semana, eu saí da reserva dos juniores pra vaga de titular do profissional. A minha vida mudaria pra sempre, mas eu sentia que continuava o mesmo. Eu ainda era o cara que achava importante a diversão no futebol, que abstraía da responsabilidade de estrear num clássico pra focar no que me dava razão de viver: jogar bola. E cá pra nós, já que estamos entre amigos vascaínos, eu era ousado pra caramba. Essa liberdade refletia tanto na minha forma de jogar, nos dribles, na coragem pra encarar qualquer adversário, como na minha maneira de ser — lancei o topetinho que a molecada copiava, mas hoje, ainda bem, não tenho mais cabelo nem idade pra isso.



Outro dia o Neymar fez um post imitando meus dribles e dizendo que, quando era pequeno, "queria ser canhoto igual o Felipe". Legal demais ter sido inspiração de um cara do tamanho do Neymar. Mal sabe ele que nesse comecinho eu dava meus dribles no Maracanã, acabava com o jogo, e voltava pra casa de ônibus e metrô.

Eu não tinha carro. Esperava as torcidas irem embora e só então saía pra encontrar meus pais e meus irmãos do lado de fora do estádio, pra gente poder voltar pra casa. Demorei um ano e meio para comprar meu primeiro carrinho. Antes, cheguei a usar emprestado o Golzinho arrebentado de um amigo. Todo amassado, furado e a porta do motorista enguiçada. Acabava o treino, a gente ia pro estacionamento, aquele monte de carrão, e eu tendo que entrar na lata-velha pela porta do carona. Bons tempos...

Gosto dessas lembranças porque elas me dão uma dimensão mais real da minha trajetória como jogador do Vasco. Hoje a torcida me chama de Maestro, mas eu não esqueço que carreguei o piano e soprei o trombone também. Depois joguei no Flamengo, com a 10 do Zico, no Fluminense, no Palmeiras, no Atlético Mineiro, Galatasaray. Jogador profissional é assim. O local de trabalho muda. O que não muda, nunca mudou, nem vai mudar é a minha história com o Vasco. Foi mais que trabalho. E estou certo que esse é o motivo de eu ter conseguido um lugar no coração dos torcedores do clube, o que me enche de felicidade.



Ainda mais quando lembro dos pesos-pesados que já vestiram essa camisa. Toda aquela turma do meu sonho e tantos, tantos outros. No grupo de 97, por exemplo, meu ano de afirmação no profissional, só tinha gente grande. Era um timaço. Fomos campeões brasileiros e, com poucas mudanças, da Libertadores de 98.

Não tem um dia sequer que eu não lembre da conquista da Libertadores. Se eu fechar os olhos agora sou capaz de me ver dando a volta olímpica no estádio em Guayaquil e de sentir a mesma adrenalina, a mesma emoção de novo. Aquilo foi grande demais. Mas tem um outro título marcante pra mim: o da Copa do Brasil de 2011. Poder voltar pra casa depois de tantos anos fora foi uma satisfação e um privilégio.

Eu sonhava em retornar ao Vasco. Não pensei duas vezes quando me fizeram o convite. A Copa do Brasil era um título que o clube ainda não tinha. Quem sabe eu pudesse ajudar nessa conquista nova e assim retribuir um pouco do que o Gigante da Colina me deu? Eu já tinha batido na trave três vezes no torneio, três vezes vice-campeão. Duas com o Flamengo e uma com o Fluminense. Era a hora. E, de certa forma, o meu sentimento mais genuíno em relação ao Vasco ficou registrado pra sempre naquela final contra o Coritiba. Tem vídeo na internet pra quem quiser comprovar.

O único time sul-americano que jogou mais que os europeus numa decisão de Mundial foi o Vasco.
- Felipe


Depois de anos usando a 10, lá estava eu de novo com a 6. Mas agora eu era meia. Acabei substituído faltando uns 12 minutos pro fim da partida. A gente tinha vencido o jogo de ida, em casa, por 1 a 0. Em Curitiba, um frio, mas um frio, estava 3 a 2 pra eles, resultado que daria o título ao Vasco. Então, quando saí, meti o agasalho e fui pro banco.

Só que em vez de assistir ao jogo, sentei no chão, cobri a cabeça com o capuz, tapei os olhos com as mãos e rezei, cara. Do meu lado, o Diego Souza fazia a mesma coisa. Eu tava com 33 anos (3+3=6) e, apesar de já ter vivido de tudo no futebol, jamais tinha experimentado uma sensação como aquela. Eu queria muito, mas muito mesmo, dar uma Copa do Brasil ao Vasco. Por isso, naquele dia, assim que o Ricardo Gomes me tirou e eu deixei o campo, me transformei no vascaíno mais fanático de todos os tempos. Mais até do que meu pai.

Ali no chão eu rezava, rezava, rezava. Só pedia pro jogo acabar logo. Por favor, meu Deus, acaba logo, por favor! Não queria ver nada. Torcia pra ouvir o apito final do árbitro e a galera gritando no banco. Aí eu abriria os olhos.

Olha, num jogo assim, o melhor lugar pra estar é dentro de campo. Muito mais fácil, porque a gente sabe o que está acontecendo e pode tomar decisões, correr, se jogar, pode fazer alguma coisa. Mas fora, meu irmão, fora é incontrolável, é desesperador. No fim deu tudo certo e a gente pôde comemorar. Eu consegui dar esse presente aos torcedores do Vasco, me tornei o jogador mais vencedor pelo clube e até hoje sinto uma gratidão imensa por isso.



Agora, a vida não é perfeita. E eu tenho um pedido de desculpas a fazer ao torcedor vascaíno. Pelo gol que perdi na final do Mundial de Clubes, em Tóquio, contra o Real Madrid. Não que seja um peso. Seria uma crueldade achar isso, depois de uma história tão bonita que construí no Vasco. Mas incomoda, não posso negar. Porque eu sei que jogamos demais naquele dia. Eu dei tudo, tudo, tudo. E, se tivesse mais, daria mais.

Tenho certeza que fomos melhores. A galera diz que em 2019 o Flamengo jogou de igual pra igual com o Liverpool. Mentira. Eu estava lá comentando a partida para uma televisão do Catar e vi ao vivo: o Liverpool foi muito melhor, muito. O único time sul-americano que jogou mais que os europeus numa decisão de Mundial foi o Vasco em 98. O Real era um timaço, com Roberto Carlos, Redondo, Hierro, Seedorf, mas a gente jogou melhor e merecia ter vencido. Teve impedimento duvidoso do Ramon, golaço de empate do Juninho, eles salvaram duas bolas em cima da linha… E no momento do jogo em que a gente estava voando, na boca de virar o placar, já no segundo tempo, acontece o meu lance.



Lembro detalhe por detalhe. Cruzamento do Roberto Carlos, cabeçada à queima-roupa, defesa espetacular do Carlos Germano. Eles cobram o escanteio na área, o Odvan corta. O Vágner recolhe a bola na lateral direita e eu disparo lá do outro lado. Bola no meio pro Ramon, que faz o giro e empurra pra mim. Com dois toques eu já estou na entrada da área. O Panucci, lateral-direito deles, e o Sanchís, zagueiro, fecham em cima de mim. No primeiro drible eu deixo o Sanchís sentado e o Panucci passa lotado. Entro na área. O Panucci volta, dou outro corte nele. Parece uma dança. Ele vira pra cá, vira pra lá, fica meio perdido e, quando se acha, eu já chutei. É gol!, pensei. Não. Tirei muito do goleiro e passou rente ao pé da trave. Pra fora. Um pecado.

Na hora a gente lamenta, o coração dói. Depois, de cabeça fria, pensa nas possibilidades. E se eu tivesse passado pro Donizete, que me pedia a bola? Ou driblado o Panucci uma terceira vez e batido de direita? Bom, com a perna ruim a chance de acertar era menor. E se chutasse no alto? Mas o "se" não existe. O fato é que, num jogo desse tamanho, na fração de segundo em que a Terra para de girar e a gente precisa tomar uma decisão rápida, minha intuição mandou arriscar. Eu arrisquei. Logo na sequência o Seedorf fez um lançamento absurdo pro Raúl, ele marcou o segundo do Real e acabou. Acabou pra sempre.

Agora estou aqui, no meu sonho, vestindo a nossa linda camisa preta, shorts branco, número 6 nas costas, São Januário lotado e em silêncio. Eu paradão no meio do campo, sozinho, olhando tudo em volta.



Na arquibancada eu vejo meus filhos, meu pai, minha mãe, meus irmãos, tios, tias, primos e o Pedrinho. Ele faz um gesto pra mim como se dissesse "vai, mérmão, fala! Tá todo mundo esperando!". Então eu tiro de dentro do meião o discurso que eu tinha preparado. Uma folha escrita à mão, frente e verso, que passei dias anotando querendo dar conta de toda a beleza de uma vida feliz passada dentro do meu clube do coração.

Finalmente eu ligo o microfone. Faz aquele zumbido nos alto-falantes. Levanto os olhos e no placar está piscando "Vasco 123 anos. Vasco 123 anos. Vasco 123 anos". 123. 1+2+3=6. Não dá pra fazer muita coisa depois disso. Eu só consigo erguer o microfone e, com os olhos cheios, dizer: "Eu te amo, Vasco da Gama".

Seis palavras. Não cabem outras.

Eu. Te. Amo. Vasco. Da. Gama.



Fonte: The Players' Tribune Brasil