Diretor da TV Globo, sobre fim da negociação com Urubu: 'Não há interesse da Globo em um campeonato desequilibrado'
Quarta-feira, 22/01/2020 - 10:14
Sem acordo para o Campeonato Carioca desta temporada, a Globo não transmitirá as partidas do Flamengo. Fernando Manuel, diretor de direitos esportivos da emissora, concedeu entrevista ao blog para explicar o desfecho negativo das negociações. O executivo também falou sobre assuntos ligados à organização do futebol brasileiro, como adequação do calendário e desigualdade financeira entre os clubes.

– Por que Flamengo e Globo não chegaram a um acordo sobre os direitos de transmissão do Carioca de 2020?

– O Flamengo possui o direito de precificar, propor e pleitear o que ele considera adequado. Há um distanciamento entre Globo e Flamengo sobre o valor. Nós desejamos um acordo com o Flamengo, acredito que eles queiram um acordo com a Globo. Contudo, existem diferenças materiais do que se pode entregar neste acordo, neste momento, e sobre as circunstâncias.

– Que circunstâncias?

– Além das questões financeiras, existe um princípio sobre como lidar com os direitos de uma maneira, eu diria, mais coletiva. Em que existam critérios que levem a uma remuneração, mas não a uma precificação por etiqueta. Não queremos que alguns clubes tenham valores maiores ou menores de maneira pré-determinada. Eu diria que o grande fator que leva a essa situação é exatamente a negociação individual.

– Como assim?

– O Flamengo deseja ver refletido nas suas receitas um valor adicional por uma performance melhor. É normal, natural e correto que alguém dentro de um clube, que logrou resultados, queira condições melhores. A grande questão, e isso explica por que a negociação coletiva das grandes ligas funciona bem, é que a indústria precisa ser sustentável. Quando um quer ganhar mais, outro tem que ganhar menos. É preciso ter um modelo que equilibre as contas dos clubes, mas que no final envolva todo mundo. Na hora em que um não está dentro desse modelo, logicamente essa proposta não pode ser concretizada.

– Na esfera estadual, o fato de o Flamengo não ter acertado com a Globo a venda dos direitos de transmissão afetará a situação dos outros clubes?

– Quando nós compramos um campeonato aqui, e eu falo sobre os meus quatro anos de gestão, em toda e qualquer aquisição de direitos a Globo não arbitrou sobre o rateio. Nem entre clubes, nem federações. Nós compramos o campeonato. Ao entregar aquele recurso para a FFERJ, a FFERJ determina o rateio entre os clubes. Eu tenho o entendimento de que existe um valor maior para os clubes chamados grandes, por terem maior torcida, e existe uma tabela para os demais. Mas essa é uma definição das federações. Quando a gente olha para a Copa do Brasil, é a mesma coisa. Nós pagamos à CBF, e a CBF tem um critério para repartir o dinheiro com os clubes, que se paga fase a fase.

–Botafogo, Fluminense e Vasco têm cotas maiores. A dúvida é se o desfecho negativo com o Flamengo fará com que a Globo pague menos à FFERJ e aos clubes chamados pequenos.

– A partir do momento em que o Flamengo não assina este contrato, o valor diminui. Diminui porque você também não tem todos os jogos do campeonato para exibir. A não assinatura de um clube não impacta apenas na ausência do seu jogo, mas nas partidas de todos os clubes com os quais ele jogará. Além do não pagamento ao Flamengo, existe um desconto no contrato geral com a FFERJ? Sim, é verdade. Não entro no mérito dos valores. A redução no dinheiro existe porque estamos comprando um produto desfalcado, então é preciso haver um redutor no contrato em função de o produto não estar completo. Como esse desconto se dará entre os clubes, não é uma atribuição nossa. A FFERJ decidirá como fazer o rateio.

– A qualidade técnica dos campeonatos estaduais é visivelmente mais baixa, e há anos sabemos que as audiências também têm caído. Como a Globo vê os estaduais?

– Os estaduais ocupam parte do calendário, estimulam as rivalidades locais entre os clubes, então é claro que eles têm relevância. Ocorre que, quando você observa a relevância do produto e a necessidade de buscar modelos de negócio sustentáveis, é natural que você elenque prioridades. As pessoas falam muito que a Globo está abandonando os estaduais, porque não quer fechar com o Athletico-PR, ou porque quer um Campeonato Brasileiro mais forte. Mas é natural que, ao elencar prioridades, você busque competições nacionais e internacionais. Elas são determinantes para o negócio. E não é uma visão só da Globo, é uma visão do mercado como um todo. É só você ver a concorrência que nós tivemos pelos direitos da Série A e da Libertadores recentemente.

– A mudança do calendário é uma pauta que está atrasada em vários anos.

– A gente tem que tentar o seguinte. Antes ou acima de ser um grande produto de mídia, os campeonatos precisam ser grandes produtos esportivos. Quando você pensa dessa forma, nesse tipo de análise, pode chegar a algumas conclusões. Será que nós temos o melhor posicionamento dos estaduais em relação ao calendário, em meio a feriados e carnaval? É uma questão que nós precisaríamos discutir para avaliar as melhores alternativas para os estaduais.

– No mercado existe a seguinte interpretação: como o calendário tem alguns meses em que só há disputas de estaduais, a Globo não poderia deixar de comprar os direitos deles, caso contrário teria problemas com o pay-per-view. As pessoas suspenderiam as assinaturas até o início do Brasileiro. Isso realmente dificulta mudanças de postura da Globo sobre estaduais?

– O estadual é um produto que faz parte da equação do Premiere, isso é inegável. Quando o Premiere foi desenvolvido no modelo que temos hoje, você vai lembrar, o estadual era até maior em termos de calendário. Mas é aquilo. Entendo a sua pergunta em termos comparativos entre os campeonatos. Acontece que, nos atuais formatos de disputa, ainda que você tenha um peso grande em valor e entrega por meio do Premiere, é natural que a maior parte dos jogos decisivos seja transmitida pela TV aberta.

– Ou seja, o estadual é importante para o Premiere, mas as partidas de maior apelo, os clássicos, acabam transmitidos pela televisão aberta e não puxam o pay-per-view.

– E nos estaduais temos vários "matas-matas": no turno, no returno, nas finais. É diferente do Campeonato Brasileiro, em que você tem um formato de pontos corridos com 380 jogos e pesos equilibrados entre eles. Todos valem três pontos. Então você tem uma alocação estratégica dos jogos entre as mídias aberta, fechada e por assinatura. Tanto que o Brasileiro gera um volume muito maior por meio do pay-per-view. Não por acaso, o Brasileiro é o maior campeonato de futebol do Brasil em termos de valores pagos aos clubes.

– A Globo entende que o calendário precisa ser revisto?

– Todo mundo adora me perguntar [risos]. Acho que porque eu decidi falar sobre calendário, embora eu fale coisas até óbvias.

– Historicamente, a posição adotada pela emissora sempre teve influência no calendário.

– Olha, o calendário é uma equação que, antes mesmo da questão da mídia, envolve definições esportivas. Eu entendo que essa questão está essencialmente nas mãos dos gestores do futebol. A Globo não é gestora do futebol, ela é parceira do futebol. Digo isso para fazer uma ressalva, porque muitas vezes eu falo algumas coisas para contribuir no debate, e as pessoas entendem como um posicionamento de toda a Globo. Na verdade, a Globo fica atenta para saber o que a CBF, as federações e os clubes vão decidir, que caminho eles vão tomar.

– Seria mais fácil manter a atenção desse garoto no futebol brasileiro com um campeonato nacional do que com os estaduais. Ainda mais porque o europeu, nesta fase do ano, está encaminhando para fases decisivas das ligas e da Liga dos Campeões. Essa é a lógica?

– Ano após ano, a gente joga demais no Brasil. Jogar demais tem efeitos negativos de natureza esportiva e comercial. Um jogo ou um produto de entretenimento pode e deve valer mais à medida que ele for raro. O Real Madrid e Barcelona, o clássico, você sabe que vai ter duas vezes no ano. Uma vez no estádio de cada um. De resto, você precisa de naturezas muito especiais como um mata-mata de Liga dos Campeões, mata-mata da Copa do Rey. A gente faz vários jogos de grandes times, e vários com todo mundo sabendo que para um dos clubes a partida já não tem aquela relevância plena que se espera de um clássico. Acho que melhor caminho é demonstrar que enxergamos valor no estadual, pela sua tradição, possibilidade de diversos títulos Brasil afora e gerar atividades para tantos clubes no país. A título de contribuição para um debate saudável, que envolve essencialmente as entidades esportivas clubes, federações e CBF, apontamos a conveniência de se avaliar qual seria o posicionamento ideal para tais competições no calendário, bem como de que maneira e quantidade comprometem as datas dos clubes que disputem as divisões principais do Brasileiro. O fato é que jogos em excesso geram transtornos, e espremer o Brasileirão também.

"Jogar demais tem efeitos negativos de natureza esportiva e comercial. Um jogo de futebol ou um produto de entretenimento pode e deve valer mais à medida que ele for raro."

– Clubes deveriam se preocupar com o desequilíbrio causado pelo estadual? Há estados com cotas de televisão acima dos R$ 15 milhões, enquanto outros não chegam à metade disso.

– A gente vive uma época complexa. O calendário é um item de muita influência não apenas esportiva, mas também comercial. É um ponto de atenção, sem dúvida. Não apenas pela distância dos valores, se um vale mais ou menos, mas sobre qual é o calendário capaz de levar o futebol a maximizar sua relevância. Somente uma competição nacional no ano todo seria capaz de trazer todos os brasileiros para assistir aos jogos nacionais. O torcedor do Ceará certamente prefere ver um jogo contra o Flamengo, contra o Grêmio, ou mesmo contra o Avaí, uma partida relevante por disputa de vaga, rebaixamento e até mesmo para o Cartola. É preciso conviver com o futebol brasileiro, prestar atenção nas forças nacionais. Um reposicionamento dos estaduais, para coexistir com o Brasileirão, pode fortalecer não apenas as competições nacionais mas também valorizar os próprios estaduais, que durariam ainda mais e não apenas em meio ao verão e ao retorno das férias, propiciando atividades mais longas para os diversos clubes que têm nele sua principal competição. Ou seja, algo positivo para a indústria, para o futebol. Todos temos que nos preocupar com o aspecto financeiro.

– A Globo é favorável ao "flavorecimento" na distribuição da verba dos direitos de transmissão, como escreveu Mario Celso Petraglia em artigo na Folha de S. Paulo?

– Essa pergunta tem vários aspectos, e nós poderíamos passar horas conversando sobre ela. Na hora que se coloca toda a responsabilidade pelo mérito do Flamengo na questão da televisão, isso é injusto com o Flamengo. Você tem uma série de fatores de gestão de elenco, compra e venda de jogadores... Dentro do atual modelo meritocrático, é claro que existe a questão do pay-per-view. As torcidas mais engajadas assinam mais pacotes, e isso acaba gerando um ganho maior para o Flamengo. Temos que pensar nisso como meritocracia.

– E qual é a posição em relação ao equilíbrio do campeonato?

– A postura da Globo? Não há qualquer interesse de quem compra os direitos de ter um produto descalibrado, desequilibrado, uma competição que não seja competitiva. Muito menos pagar mais a quem quer que seja. O que nós buscamos fazer aqui, desde 2016, foi implementar um novo formato. Nós tivemos que negociar esse formado forçosamente em negociações individuais, pela maneira como o mercado tinha se apresentado. Quando chegamos na negociação, já tinha clube fechado com a Turner, tinha clube fechado com a Globo que nós tivemos que reformular. A gente buscou, sim, mesmo através de negociações individuais, construir um modelo mais coletivo e endereçar ali dentro equilíbrio e meritocracia.

– No novo modelo, dois terços da verba do Campeonato Brasileiro estão divididos em 40-30-30: 40% iguais para todos, 30% conforme transmissões, 30% de acordo com colocação na tabela. Mas ainda há um terço desequilibrado pelo pay-per-view. O que a Globo acha?

– O avanço que conseguimos foi grande. O modelo é perfeito? Não, não considero perfeito. Até porque seria impossível, se você olhar para o que acontecia em 2016, com uma negociação individual, numa dinâmica de concorrência... Os clubes logicamente usaram das ofertas que tinham para alavancar suas posições. Era um quadro desafiador. E transformações dessa natureza não são feitas de supetão. Precisa ser feito de maneira sustentável, responsável. Responsável naquele momento era a construção do modelo dos direitos com mais coletividade, equilíbrio e meritocracia.

– O que dirigentes pensam sobre o desequilíbrio no pay-per-view?

Aos olhos de muitos clubes, eles entendem que deve haver meritocracia comercial no pay-per-view, mas há uma distância muito grande para o Flamengo. OK. Agora precisamos lembrar que o pay-per-view representa um terço do bolo, do que é investido na Série A, e nada impede logicamente que seja promovido um debate para avaliar os efeitos do modelo. O princípio é pagar mais para quem vende mais assinaturas, pagar menos para quem vende menos. Se o aspecto do distanciamento for um problema, ele pode ficar melhor. Mas, de novo, isso não é algo decidido pela compradora dos direitos, até porque a Globo é apenas um agente comercial que depende outros players no mercado, que tem concorrentes. A gente depende dos clubes para fazer essas mudanças.

– A Globo é contra a formação de uma liga?

– Na realidade, primeiro precisamos entender que liga não é um negócio só para vender direitos de transmissão. A liga, na verdade, seria ou será um dia responsável por muitos outros aspectos do futebol. Ela pode ter uma visão mais institucional, de organização, de relacionamento com o público. Na questão dos direitos, se você olha para o que acontece no mundo e o que acontece no Brasil, sim, eu acho que uma negociação coletiva é muito mais eficiente para gerar esse tipo de modelo em que você coloca critérios, e a remuneração maior ou menor de um clube vem através da meritocracia.

"Na questão dos direitos de transmissão, se você olha para o que acontece no mundo e o que acontece no Brasil, sim, eu acho que uma negociação coletiva é muito mais eficiente."

– Ficaria mais fácil negociar com uma liga do que individualmente?

– Na prática, quem compra os direitos não está comprando a partida, o clube. Ele está olhando o conjunto da obra. Isso é consequência da ausência da negociação coletiva. A compradora dos direitos ajuda a construir ou financiar a construção da balança, mas o clube vale quanto ele pesa. Quem ganha mais no campeonato, ganha mais dinheiro da televisão. O que não pode haver é uma etiqueta que diga quanto cada um vale. Tem que ser dinâmico. Você pega, por exemplo, o Flamengo, e ele teve um ano maravilhoso, com muito mérito esportivo e administrativo. Mas há um ano nós falávamos do Palmeiras, antes disso de Corinthians e Grêmio. Aliás, isso é um dos grandes baratos do futebol.

Fonte: Blog do Rodrigo Capelo - GloboEsporte.com