Em entrevista dada em novembro, Eurico Miranda falou sobre a luta contra o câncer
Quarta-feira, 13/03/2019 - 10:23
"Ele te aguarda amanhã à tarde no Vasco". Sem saber muito bem quando, cheguei cedo em São Januário, por volta das 14 horas, e fui saber que Eurico Miranda tinha consulta médica marcada naquele horário. Ninguém sabia se ele realmente viria. Na condição de saúde em que estava, qualquer outra pessoa mandaria remarcar o encontro com o tal jornalista, que tinha viajado de São Paulo ao Rio de Janeiro especificamente para entrevistá-lo para um livro. Meu interlocutor recomendou paciência. "Arrisca". Comi os pães de queijo da cantina, dei voltas no estádio e na sala de troféus. Esperei. Qualquer outro mandaria remarcar. Ele, não. Lá pelas 21 horas, o carro chegou.

O motorista desceu, tirou do porta-malas a cadeira de rodas e veio até a porta do passageiro para tirar o dirigente do veículo. Tinha anoitecido, e estávamos do lado de fora a secretária dele e eu. Esperávamos por ele há muitas, muitas horas. Eurico acenou para ela como quem pedia para que eu me afastasse. Entrei na sala. Depois fui saber que ele não gostava de ser visto em momentos de fragilidade. Por mais que estivesse a enfrentar um câncer no cérebro aos 74 anos, depois de ter superado um tumor na bexiga, e outro no pulmão, o cartola não pretendia deixar que desconhecidos o vissem em posição de vulnerabilidade, carregado do banco de passageiros para a cadeira de rodas pelo segurança.

Eurico foi empurrado para dentro da sala pelo segurança, cumprimentou-me com um aperto de mãos antes de ser colocado por trás da mesa. Ele estava nitidamente interessado em contar o seu lado da história, apesar do abatimento físico e da longa jornada naquele dia. Além da consulta médica, ele tinha passado pelo centro de treinamento cruzmaltino e pegado um trânsito acima da média carioca.

A aparência dele em nada se parecia com a de anos atrás, do barrigão sob suspensórios e do charuto no canto da boca. À minha frente estava um senhor de cabelos brancos desgrenhados, bochechas flácidas e olhar cansado. Um olho aberto por inteiro, outro só pela metade. Aspecto doentio natural para alguém com sua condição clínica, mas diferente do homem que fizera inimigos por todos os lados nas últimas décadas.

Acomodado com a ajuda constante da secretária, que lhe trouxe um copo d'água e um pacote de biscoitos Globo, o dirigente começou a conversa dizendo que a memória estava boa. Não pretendia aparentar fragilidade, mas vacilava com as palavras. Metia os salgadinhos na boca, mastigava-os lentamente, soltava frases com longas intermitências. Atrás de mim havia uma televisão transmitindo Atlético-GO e Avaí, jogo válido pela segunda divisão. Era 6 de novembro de 2018. Para que se tenha uma ideia da vagarosidade com a qual Eurico falava, enquanto ele dizia cinco ou seis palavras, o comentarista Sérgio Xavier Filho fazia comentários com mais de 40. As respostas de Eurico eram coerentes, os números batiam, os nomes das pessoas estavam todos certos. Mas ele não estava em condições de falar com o vigor que o caracterizava.

Em quase uma hora e meia de entrevista, praticamente metade do tempo foi usada para falar das passagens enquanto dirigente do Vasco. Da vez em que viajou a Barcelona para repatriar Roberto Dinamite, em 1980, e "fez uma m**** sem tamanho para reverter a situação". Da ascensão política que o levou até a direção recém-formada por Ricardo Teixeira na CBF em 1989, ano em que também deu um golpe de mestre no Flamengo para contratar Bebeto. Eurico puxou a cadeira de rodas para a frente ao contar sobre 1990, quando enfrentou o cartel colombiano após partida da Libertadores contra o Atlético Nacional, na qual o árbitro tinha sido ameaçado por traficantes para privilegiar os adversários. O cartola tinha suportado a pressão e obrigado a Conmebol a remarcar a partida, passagem que agora o enchia de orgulho.

A importância que Eurico teve para o Vasco e para o futebol brasileiro, os efeitos de suas ações e omissões, que levaram o clube ao auge de sua história e também à sua maior depressão, econômica, política e esportiva, ficam para o livro. Não vou entendiá-los com os detalhes em um texto tão breve. A ideia aqui é falar sobre a outra metade da entrevista. Na qual o todo poderoso Eurico Miranda falou de si.

– O que o tratamento contra o câncer te exige?

– Radioterapia, quimioterapia. Estou enfrentando e vou superar. Isso mexeu... Atingiu o encéfalo, uma parte que atinge o emocional, e aí aparentemente eu estou... Fraco. Mas eu não estou. É só aparência.

– A sua imagem sempre foi de alguém que brigava, gritava. De certa forma, era um personagem para defender os interesses do Vasco?

– Personagem eu não fui. Isso começou lá atrás. Começaram a criar uma coisa de que aqui [no Rio] a grande força do futebol era Flamengo e Fluminense. E eu... Eu tinha que acabar com isso. O que eu fiz? Bombardeei o Fluminense para o Vasco ser o adversário do Flamengo. Isso foi intencional. Mas não é... Eu não criei personagem. Eu criei isso que você vê aí. Flamengo e Vasco como um campeonato à parte.

O cartola apontava para um quadro acima de nossas cabeças, no qual havia uma caricatura de si mesmo a estrangular um urubu flamenguista.

– Hoje, com o câncer, alguém te fala: Eurico, descansa?

– Todo mundo fala. Todo mundo fala. É, mas eu também... Os caras me pedem, e eu ajudo. Eu não consigo ficar alheio. Todo mundo diz... Meus filhos são uns. "Ô, pai". Mas eu não consigo. Ah, o Vasco vai jogar. Ah, tá bom. Eu vou saber o resultado amanhã? Depois de amanhã? Logo mais? Não. Eu não consigo ficar alheio. Isso é um negócio interno.

– Seus filhos pedem para dar uma segurada?

– É, mas eles... Eles pedem, mas sabem que isso me faz falta.

A pergunta seguinte veio enquanto o dirigente tentava, inutilmente, acender o próprio charuto com um isqueiro do tipo maçarico. Ele clicava, clicava, e não conseguia acertar a ponta. A secretária apareceu para ajudá-lo a reacender o Cohiba que fumava desde o início da entrevista.

– O charuto apareceu uma vez na mídia, você gostou da imagem e criou um hábito a partir dali, certo?

– Eu não trago, né? Eu fiquei fumando charuto. Fez um tipo. Mas é... O charuto me... É quase como uma descarga. Uma bengala. Se tiver que largar, eu largo. Às vezes os médicos me dizem: "se você continuar fumando, você vai morrer". E aí eu paro. Eu acho que o único vício que vence o homem é o Vasco. No meu caso.

– Como o Vasco te venceu?

– Eu não tenho como largar o Vasco. Quando eu digo que você pode largar tudo... Eu seria um ingrato do c****** se dissesse que posso até largar a minha mulher. Que eu não posso. Minha mulher é o sustentáculo meu. Mas eu, se eu tivesse que trocar o Vasco por uma mulher, não faria. Entendeu? Eu estou falando dessas comparações malucas, mas é o que eu sinto. Realmente tenho que suportar isso.

Neste momento específico da entrevista, não houve perguntas. Eurico se referia às acusações de que tinha desviado dinheiro do Vasco. Na condição de presidente cruzmaltino e deputado federal, ele fora investigado por senadores em uma CPI em 2001. Documentos contábeis e fiscais provaram que verba vascaína tinha sido usada em benefício do dirigente e de seus familiares, inclusive com movimentações por meio de um laranja, Aremithas José de Lima, e a compra de uma mansão nos Estados Unidos. Eu não cheguei a tocar nesses assuntos. Não pretendia confrontar o adoentado cartola. Ele começou a falar do que sentia em relação a isso espontaneamente. Como quem presta contas a si mesmo.

– Os caras dizem que você é ladrão, que você é isso, que é aquilo. Mas eu também entendo o seguinte. O cara tem que estar preparado para enfrentar essas coisas. E superá-las. Quando você, a tua consciência, sabe que não é nada disso... Eu sempre fui de enfrentar. De não aceitar. Sou até hoje. Quem me conhece sabe que eu não mudei nada. Ô, cara, deixa eu te dizer uma coisa. Eu não me vendo. Não há dinheiro que me compre. Eu faço as coisas pela minha consciência. E eu tenho uma filosofia de vida. Se eu não puder fazer o bem, mal eu não faço. Agora... Enfrento. Reajo. Eu não aceito passivamente as coisas. Mas estou... Eu sou... Sou um temente a Deus. Sou temente. Eu acredito mesmo.

– Hoje em dia o senhor vai todos os dias à capela de São Januário.

– Vou à capela porque acredito que tenho proteção forte de Nossa Senhora aí na capela. E eu vou rezar. Mas é para agradecer pela força que eu recebo. Os caras... Pode ser piegas. Só que eu acredito. Eu acredito. E eu não estou preocupado com o que os outros acham. Eu vivo muito com a minha consciência. Eu tenho certeza de que mal eu não faço. Eu devo ter feito alguma coisa de mal, devo ter errado muito, mas não intencionalmente. Intencionalmente, não. Não faço.

– Quando o senhor fala que se sente emocional, o que é isso?

– Eu me sinto fraco emocionalmente.

– O senhor chora?

– É... Mas não é fraqueza.



Fonte: Blog do Rodrigo Capelo - GloboEsporte.com