Vascaínos são maioria na comunidade que leva o nome do clube: Barreira do Vasco

Domingo, 24/05/2015 - 10:45
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NAS ENTRANHAS DA BARREIRA

Moradores sentem orgulho de viver na comunidade que leva o Vasco no próprio nome

PAULO MURILO

Quem mora na Barreira do Vasco sente orgulho de onde vive, e vê o clube de São Januário como quintal, do qual estão separados pela Rua Ricardo Machado e por enormes muros de cimento. Apesar dos problemas comuns a qualquer comunidade pobre, como falta d’água, de saneamento e de energia, a primeira favela de São Cristóvão é privilegiada pela localização estratégica, por ser plana e de fácil acesso. Além disso, com a instalação da 32ª Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em abril de 2013, a vida melhorou para os mais de dez mil habitantes, que circulam por ruas, becos e vielas sem cruzar com traficantes armados.

Os vascaínos são maioria. Isto se deve à presença física do clube e à integração dele com a comunidade, numa via de mão dupla que sempre existiu. Além disso, os moradores do bairro Vasco da Gama – incluindo a Barreira – ainda hoje se identificam como moradores de São Cristóvão, antigo bairro imperial, cuja influência portuguesa é marcante.

A relação já foi mais intensa, como revela o sociólogo Felipe Souza, de 27 anos e ex-morador da comunidade:

- Antes, o Vasco oferecia de graça aulas de vários esportes. Lembro que tive aulas de boxe com o professor Nemo. Nos fins de semana, as famílias da favela tinham acesso à piscina, que vivia lotada, mesmo sob protesto dos sócios. Era um espaço de integração de classes sociais. Outra coisa: sempre que o estádio não enchia, os portões da arquibancada eram abertos no segundo tempo.

O escudo do Vasco está em toda parte – em bares, carros, motos e bandeiras. Isso porque na Barreira a pressão da mídia rubro-negra é inócua.

Felipe Souza destaca o caráter democrático do lugar:

-É simbólico: aqui é Vasco e ponto final. O interessante é a tolerância. Em jogo do Flamengo, a torcida do rival, mesmo em minoria, acompanha pela TV e não tem briga. O inverso seria improvável. É possível andar com as camisa de outros clubes até em dia de jogo do Vasco que pode ser vaiado, podem brincar de forma jocosa, faz parte do futebol e da nossa cultura, mas sem agressão.

O Vasco – com Dinamite na presidência – passou a impedir a entrada de não sócios, mas, desde 2009, promove o “Dia da Ação Social”, quando moradores se beneficiam de serviços gratuitos de emissão de carteira de trabalho, de identidade, de Defensoria Pública, atendimentos médicos e dentários, aplicação de vacinas, banco de emprego e, para mulheres, manicure, pedicure e cabeleireiro, dentre outras atividades.

Os jogos alimentam o comércio e este supre a demanda por consumo de cerveja, comida e outros produtos. Nos botecos, jogos do Vasco passam ao vivo, um “serviço” que favorece o torcedor que, por algum motivo, não entrou no estádio. Em dia de casa cheia, a Rua Ricardo Machado tem o trânsito quase interrompido pela multidão. Além disso, raramente há furto de carro em São Januário porque os guardadores são locais e ainda temem ser punidos pelo tráfico.

GEOGRAFIA – A Barreira está próxima da Avenida Brasil, da Linha Amarela, da Linha Vermelha, da Rodoviária Novo Rio e dos principais acessos à Zona Sul. É vizinha de grandes polos como o próprio estádio de São Januário, a Feira de São Cristóvão e o CADEG. E a região é assistida por várias linhas de ônibus.

- Quem está na Vila do João ou em Bonsucesso demora o dobro de tempo para chegar ao Centro - constata o sociólogo, ressaltando que São Cristóvão ainda possui uma forte indústria têxtil, que atrai a mão de obra local.

Comparados com outras comunidades vizinhas como Mangueira, Tuiuti e Caju, o preço de aluguel ou venda de imóveis na Barreira está acima da média. O nível de escolaridade também é proporcionalmente elevado. Há muitos moradores formados em Administração, Contabilidade, Direito e outras áreas. O valor oscila de acordo com o local. Próximo ao Vasco é mais caro porque são ruas projetadas. A região mais pobre foi batizada de Uga-Uga – quase uma favela dentro da favela –, referência a uma novela da TV Globo transmitida em 2000, quando o terreno, antes um areal, foi ocupado por ex-moradores de Manguinhos, vítimas de um incêndio que deixou milhares desabrigados.

VIOLÊNCIA – A Barreira nunca foi das mais perigosas. Antes da UPP, os tiroteios muitas vezes eram causados pela ação da polícia, que fazia incursões em horários impróprios, com trabalhadores e crianças nas ruas. Na lógica dos traficantes que trocavam tiro com a polícia – considerada inimiga – eles não defendiam a boca de fumo, e sim a comunidade. O auge da violência na guerra de facções foi nos anos 90. Bem antes disso, o tráfico na Barreira era independente, mas, pressionado, aderiu ao Comando Vermelho, assim como Tuiuti, Arará e Mangueira, enquanto o Caju, do outro lado da Avenida Brasil, passou a ser controlado pelo Terceiro Comando e pela ADA.

Ainda hoje, é perigoso transitar de uma favela para a outra, rival, a menos que se tenha uma bíblia às mãos – é o salvo conduto. A redução da violência estimulou o comércio e outras iniciativas. Uma delas é o projeto “Retalhos Cariocas”, da estilista Silvia Oliveira, que abriu um ateliê para a confecção, dentre outras coisas, de sandálias havaianas estilizadas. A produção cultural é modesta. Grupos de pagode e samba fazem boa música, e o mesmo acontece nas igrejas católicas e protestantes. Curiosamente, não se pratica religiões afro-brasileiras na favela.

ESTRUTURA – Lançado em 2010 e com previsão de investimento de R$8 bilhões, o projeto “Morar Carioca” pretende urbanizar todas as favelas até 2020, com obras de infraestrutura, moradia, lazer e paisagismo. A Barreira, naturalmente, está nos planos, especialmente no Uga-Uga, onde vivem 200 famílias. As obras no local deveriam ter começado em 2013, mas o prefeito Eduardo Paes – que prometeu os realojar em apartamentos próximos – parece ter desistido, pois o dinheiro sumiu.

Segundo a presidenta da Associação de Moradores da Barreira, Vaninha Miguel, de 46 anos, a prioridade deve ser a melhoria na distribuição de água:

- Com o aumento da população, o sistema saturou. Outros problemas são a eletricidade e as ruelas apertadas.

Para Felipe Souza, a falta de infraestrutura é um obstáculo ao crescimento:

- Sobra potencial, dinheiro, ideias e mão de obra. Mas não tem água. Há muitos solteiros. Se alguém quiser montar uma lavanderia não pode, porque falta água, tem briga para puxar canos, para conseguir manter sua caixa d’água cheia.

Atualmente morando em Niterói, mas com os pais cearenses ainda na comunidade e sempre visitando-os, o sociólogo nota que as coisas mudaram:

- Todo mundo tem ar-condicionado e antenas da Sky ou da Net. Quando a UPP chegou, meia hora depois surgiram os operadores oferecendo serviço a preço popular e venderam muito. Há 15 anos, ao dormir na Barreira, só se ouvia o barulho de gatos e insetos. Hoje é do ar-condicionado. Lan houses continuam cheias, outras sumiram porque a população agora tem computador em casa. Como não há transformadores suficientes para aguentar o consumo, são frequentes as quedas de energia no verão.

OCUPAÇÃO – A Barreira surgiu na década de 1930, quando o presidente Getúlio Vargas doou terras à Igreja Católica para a construção de habitações populares. A maior parte do terreno era pantanoso, foi nivelado e coberto de concreto. Os primeiros habitantes eram do interior do Estado e famílias de pescadores locais. Isso mesmo: pescadores, pois, antes na inauguração da Avenida Brasil, em 1946, São Cristóvão e Caju eram um bairro só.

- As famílias de São Cristóvão frequentavam a Praia do Caju. Havia um fluxo intenso entre a região costeira e a região um pouco mais afastada – comenta Felipe Souza.

Ao fim da II Guerra Mundial, em 1945, muitos soldados da FEB, ao retornar, não tinham destino. Alguns foram para a Barreira. Outra comunidade de ex-combatentes se fixou no Tuiuti. Getúlio Vargas, então, assinou documento pelo qual aquele espaço passou a pertencer aos moradores. A construção da Avenida Brasil, nos anos 40, estimulou a chegada de levas de nordestinos, que se instalaram em canteiros de obras próximos da obra e muitos destes alojamentos improvisados viriam a se tornar favelas. Isso fez aumentar a população da Barreira.

De dez anos para cá, essa imigração voltou a se intensificar. A presença deles dinamizou o comércio e hoje é comum aos moradores do “asfalto” irem à Barreira comprar em restaurantes, lanchonetes, salões, padarias, lojas de material de construção, cooperativas de moto e pizzaria até a madrugada. Em geral, é mais barato e a qualidade é a mesma.

RIVALIDADE – Há um rixa entre os cariocas e as comunidades nordestinas (cearenses, maranhenses, baianos e paraibanos), como revela Felipe Souza:

- Tem bares só de nordestinos e outros só de cariocas. Em um toca forró e, no outro, funk. Não se misturam nunca. O nordestino, que em geral é racista, é visto como aquele sujeito que veio para ganhar dinheiro. Já o carioca tem uma socialização comunitária e não a socialização do comércio. Pega o feijão aqui, o arroz ali, o café, é o aniversário do amigo, do vizinho, e as famílias eram maiores porque as residências eram maiores. Isso vem diminuindo porque quando o nordestino chega, também chega repartindo a casa.

TEMPLO – Só em três situações a paz e a harmonia imperam entre traficantes da Barreira e do Caju (atualmente, o clima é tenso entre eles) e entre cariocas e nordestinos: na infância, pelas crianças das duas favelas e de todas as origens geográficas – que estudam juntas no Colégio Estadual 14 de Novembro; nos cultos e missas. E, especialmente, nos jogos do Vasco. Aí não tem funk nem forró. A rivalidade do dia-a-dia é quebrada e eles se misturam, confraternizam e bebem nos botecos lotados.

Afinal, o jogo vai começar e todos são vascaínos.

(Nas fotos, o sociólogo Felipe Souza e o início da ocupação)





Fonte: Facebook O Meu Vascão