NETVASCO - 24/09/2006 - 04:07 - Confira um resumo do 'Caso Eurico Miranda' no TRE/TSE
Resumo do caso
Em 23/08/2006 a juíza do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) Jacqueline Montenegro impugnou a candidatura do presidente do Vasco Eurico miranda à Câmara dos Deputados por ele possuir, no entender da juíza, "uma certidão repleta de anotações criminais". ( / / )
Eurico recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, num julgamento que foi interrompido três vezes por pedidos de vista dos autos, acatou o recurso do presidente do Vasco por 4 votos a 3, permitindo que ele se candidatasse a deputado federal. Votaram a favor da candidatura de Eurico os ministros Marcelo Ribeiro (relator), Marco Aurélio Mello (presidente do TSE), Cezar Peluso e Gerardo Grossi; votaram contra os ministros Carlos Ayres Britto, César Asfor Rocha e José Delgado.
Julgamento no TSE
05/09/2006 - Voto do ministro Marcelo Ribeiro (relator) - Eurico 1 a 0
O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro considerou a vida pregressa do candidato Eurico Miranda para negar a candidatura. Segundo o TRE-RJ, ele não teria "postura moral" para exercer cargo público por responder a processos criminais pela suspeita de prática dos seguintes crimes: evasão de divisas, sonegação fiscal, furto, uso de documento público. Em nenhum dos casos, há sentença condenatória transitada em julgado.
O ministro Marcelo Ribeiro sustentou que a fundamentação do acórdão do TRE fluminense foi no sentido de que o parágrafo 9º, do artigo 14, da Constituição Federal seria auto-aplicável. Isso não ocorreria, contudo, no entendimento do ministro.
Esse dispositivo diz que "lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta".
"Nós sabemos que (essa) é a Lei complementar 64/90, onde não consta dispositivo que permita se chegar à conclusão que chegou o acórdão recorrido, o qual entende que a existência de ações penais em curso, sem trânsito em julgado, seria suficiente para afastar a idoneidade moral do candidato, considerada sua vida pregressa", afirmou o relator.
E concluiu: "Fala-se muito em presunção de inocência e acho que não devemos chegar a isso. Acho que teríamos que examinar se há ou não violação ao princípio da presunção de inocência, se a lei dissesse que a mera existência de ação penal configura inelegibilidade. Mas a questão só se colocaria se a lei previsse essa inelegibilidade pelo fato só da existência de ação penal. Como a lei não prevê, o fundamento básico é que o Tribunal decidiu com base de que o dispositivo seria auto-aplicável, e não é".
05/09/2006 - Voto do ministro Marco Aurélio Mello (presidente do TSE) - Eurico 2 a 0
Ao votar, o presidente do TSE, ministro Marco Aurélio, ponderou que o Tribunal, no caso, está a julgar estritamente no campo da inelegibilidade. Nessa esfera, segundo o ministro, não cabe - como já havia ressaltado o relator - cogitar do princípio da não culpabilidade. "Não cabe confundir o princípio da não culpabilidade com o da inelegibilidade", observou. "O principio da não culpabilidade, considerou o Supremo, é o princípio mesmo da inocência e está ligado ao campo penal", completou.
O ministro Marco Aurélio declarou, de acordo com o observado recentemente pelo ministro Gerardo Grossi, na resposta pelo não conhecimento da consulta do deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ): "Os partidos políticos são lenientes. Não fazem a triagem devida quanto aos candidatos, quanto à aprovação de nomes em convenções", afirmou.
O ministro destacou, ainda, que os juízes não podem ser confundidos com legisladores, no sentido de alterarem a lei, o direito posto:
"Não somos nós legisladores, não podemos nos substituir ao Congresso Nacional, porque o Congresso Nacional, muito embora tendo havido a aprovação da Emenda Constitucional de Revisão 4/94 - em verdadeiro lembrete do que já estaria latente no parágrafo 9º - não veio a alterar a lei de 90, já que a emenda é de 94".
O parâmetro de julgamento, no caso concreto, é a Lei 64/90, definiu o ministro Marco Aurélio. Nela, a inelegibilidade, considerado os processos criminais, só vale para os processos transitados em julgado. O ministro salientou que não é possível substituir esse entendimento por processos ainda em curso, mesmo diante das circunstâncias políticas atuais.
O ministro ainda reconheceu que "o julgamento não será, em termos de crivo de Tribunal Superior Eleitoral, entendido pela sociedade, que anseia pela correção de rumos, objetivando a punição daqueles que, de alguma forma, se mostrem - pelo menos no campo da presunção - como transgressores da ordem jurídica".
Contudo, apesar da relevância cidadã do julgamento, ressaltou que não se pode abandonar os parâmetros legais, o texto da Carta de 1988, o conteúdo da Lei de Inelegibilidade em vigor.
"Que sirva a decisão do Tribunal Regional Eleitoral até mesmo de advertência de cobrança, ao legislador, à União como legislador, ao Congresso Nacional, às duas Casas do Congresso Nacional (...), mas não há como chegar-se ao endosso, por maior que seja a vontade sob a visão leiga, do que decidido pela Corte regional do Rio de Janeiro", concluiu.
Logo após o voto do ministro Marco Aurélio, o ministro Carlos Ayres Britto pediu vista dos autos.
14/09/2006 - Voto-vista do ministro Carlos Ayres Britto - Eurico 2 a 1
O julgamento do caso foi retomado nesta noite com a apresentação do voto divergente do ministro Carlos Ayres Britto.
O ministro chamou a atenção, no voto, para os princípios constitucionais de direito coletivo - como o da soberania popular e da democracia representativa - que, segundo sua convicção, devem se sobrepor ao direito individual. Ele destacou que, enquanto o princípio da não culpabilidade está previsto no capítulo dos direitos individuais da Constituição Federal de 1988, os direitos políticos, invocados por Eurico Miranda para ser candidato, estão abrangidos no capítulo dos direitos coletivos.
"O eleitor não exerce o direito para se beneficiar, o mesmo acontecendo com o candidato a cargo político eletivo, que ali está para representar uma coletividade, jamais para servir a si próprio", salientou o ministro Carlos Ayres Britto.
O ministro destacou ainda que chegou a hora de se buscar a "ética da interpretação" sob pena de se fazer uma "interpretação leniente, para não dizer cúmplice" da Constituição Federal.
O ministro pontuou que Eurico Miranda responde a nove processos na Justiça, sendo oito penais e um por improbidade administrativa. Dentre os crimes pelos quais o candidato responde, estão: falsificação de documentos públicos; crimes contra o sistema financeiro e tributário; ausência de contribuições previdenciárias; injúria e difamação; furto e lesão corporal. Em nenhum dos casos, há sentença condenatória transitada em julgado.
"Foi essa incomum folha corrida, aliada a outros fatos públicos notórios, que levou o TRE à negativa da candidatura do candidato. A mim, procedeu com razoabilidade. É chegada a hora de se dar a essa Constituição, chamada de cidadã, a condição de limpeza, sobretudo dos costumes eleitorais", afirmou.
"Há certos candidatos que fazem a opção por um estilo de vida delituosa", complementou.
O ministro também demonstrou a diferença entre condições de elegibilidade, que estariam elencadas na Constituição Federal, e as condições de inelegibilidade, previstas na Lei Complementar 64/90. Para o ministro, ao arrolar as condições de elegibilidade, a Constituição Federal, pelo contexto ontológico (razão de ser), nem precisou dizer que a idoneidade moral era uma delas.
"É chegada da hora de se dar a essa Constituição uma interpretação de pureza e decantação do regime democrático. A Lei Complementar (64/90, a Lei das Inelegibilidades) silenciou, não diz o que vem a ser vida pregressa", ressaltou o ministro.
Íntegra do voto
Com o propósito de examinar com mais detença o objeto do presente recurso ordinário, pedi vista dos presentes autos. Vista que me foi concedida na sessão plenária de 5 de setembro do fluente ano e que me possibilitou elaborar o voto que ora submeto ao lúcido pensar dos meus dignos pares, precedido do breve relato que segue.
2. O eminente Ministro Marcelo Ribeiro, relator deste feito, assim desenhou o perfil do presente recurso:
"(...)
Senhor Presidente, tenho voto escrito, mas vou resumir, porque, na verdade, é um fundamento apenas, com uma derivação.
O fundamento do acórdão recorrido é no sentido de que o art. 14, § 9º da Constituição, seria auto-aplicável, e diz o seguinte: Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade, para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, a normalidade e legitimidade das eleições, contra a influência do abuso do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração pública."
Além de haver súmula deste Tribunal assentando a não-autoaplicabilidade deste artigo, ele começa dizendo que lei complementar estabelecerá. E não tenho a menor dúvida de que um artigo que diz que a lei estabelecerá não é auto-aplicável, pois não é nos termos da lei que se faz uma ressalva, e a lei complementar, todos sabemos, é a Lei Complementar nº 64/90, que não consta desta lei dispositivo que permita se chegar à mesma conclusão que chegou o acórdão recorrido, que entende que a existência de ações penais incursas sem trânsito em julgado - e é tranqüilo que não há nenhum trânsito em julgado -, que seria o suficiente a afastar a idoneidade moral do candidato, considerada a sua vida pregressa. E sustenta essa tese com base na auto-aplicabilidade do art. 14, § 9º, da Constituição, que, evidentemente, não é auto-aplicável.
Fala-se muito em presunção de inocência, e penso que não é preciso nem se chegar a isso, porque teríamos de examinar se há ou não violação ao princípio da presunção de inocência se a lei dissesse que a mera existência de ação penal configura inelegibilidade. Parece que o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de examinar isso pela ótica da Lei Complementar nº 5 e entendeu, naquela época, que não haveria inconstitucionalidade. Mas aqui a questão não se coloca, mas se colocaria se a lei previsse essa inelegibilidade pelo fato só da existência da ação penal; como não prevê, faço algumas considerações sobre isso, mas o fundamento básico é que o Tribunal decidiu, com base na fundamentação de que o art. seria auto-aplicável e não é.
Assim, com esses fundamentos, dou provimento.
(...)".
3. Pois bem, depois desse tracejamento do quadro factual-jurídico em que se insere o presente recurso, o nobre relator concluiu pelo seu conhecimento e provimento. No mesmo sentido, o Ministro Marco Aurélio aduziu em seu voto que:
"(...)
Estamos a julgar no campo da inelegibilidade; estamos a julgar no campo de regras que consubstanciam a exceção, de regras que, portanto, somente podem ser interpretadas, de forma estrita, ao que nelas se contém.
O que nos vem da Constituição Federal? E aqui não cabe, como já ressaltado pelo relator, cogitar do princípio da não-culpabilidade. Não cabe porque o Supremo, ante a Lei Complementar nº 5/70, revogada pela Lei Complementar nº 64/90, enfrentando a inelegibilidade causada pela propositura da ação penal, oferta da denúncia pelo Ministério Público e recebimento dessa denúncia ¾ o preceito exigia não apenas a propositura da ação penal, mas o recebimento dessa mesma propositura via acolhimento da denúncia ¾ no julgamento do Recurso Extraordinário
nº 86.297, reafirmando dois pronunciamentos anteriores, apontou que não cabe confundir ¾ àquela época o princípio era implícito, não explícito como atualmente ¾ o princípio da não-culpabilidade com inelegibilidade. Na dicção do Supremo Tribunal Federal ¾ considerado esse último precedente, tenho-o em mãos, da lavra do Ministro Carlos Thompson Flores ¾, o princípio da não-culpabilidade, ou o princípio mesmo da inocência, está ligado ao processo penal, mesmo assim se admitindo, no campo penal, certas iniciativas que mitigam esse princípio, como arresto de bens, como prisão preventiva e outras situações concretas.
Nesse precedente o Supremo teve a oportunidade de consignar o seguinte, fls. 614:
"Creio [e não foi refutado o voto do relator, primeiro voto que formou na maioria] ser pacífico que salvante as hipóteses que constam das várias alíneas do parágrafo único do art. 151 da Constituição, as quais passavam a viger desde logo tal como o existe na Constituição de 1988, os demais casos de inelegibilidade ficaram relegados à Lei Complementar".
Isso está, a meu ver, escancarado na Carta de 1988. O § 9º do artigo 14, na versão primitiva, preceituava:
"Art. 14 (...)
(...)
§ 9º Lei Complementar [não qualquer lei] estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de [a lei complementar, o estabelecimento mediante lei complementar] proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a fluência do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo e emprego na administração direta ou indireta".
Esse o texto primitivo da Carta de 1988 desprezando o que vinha da Carta de 67, considerada até mesmo a Emenda nº 1 de 1969, no que aludia o artigo 151, que a lei complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos dentro dos quais cessará esta ¾ houve a repetição em 1988 ¾ visando a preservar a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, levada em consideração a vida pregressa do candidato.
Ressaltemos, mais uma vez, considerado o texto primitivo da Carta de 1988, abandonou-se o que eu veria até mesmo aqui, em termos de sinalização ao legislador complementar, como de contorno simplesmente pedagógico, já que se imagina que no tocante à inelegibilidade, à disposição sobre os casos que deságuam na inelegibilidade, o legislador considerar, evidentemente, a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato e levar em consideração a vida pregressa do candidato.
Veio a Emenda de Revisão nº 4 e inseriu, no § 9º do artigo 14, o que se continha no art. 151 da Carta dita decaída pelo Ministro Sepúlveda Pertence. E houve a inserção da cláusula, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato. E a normalidade ¾ nesse caso repetiu-se o que já contido no § 9º, na versão primitiva ¾, a legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico, ou abuso do exercício de função, cargo, emprego na administração direta ou indireta.
Permita-me, Ministro Gerardo Grossi, ressaltar um aspecto consignado por Sua Excelência neste Colegiado: "Os partidos políticos são lenientes, não fazem a triagem devida quanto aos candidatos, quanto à aprovação de nomes em convenções".
Sua Excelência consignou isso ao concluir pelo não-conhecimento da consulta formulada pelo Deputado Miro Teixeira. E o Congresso Nacional está a dever à sociedade brasileira uma Lei de Inelegibilidades, já considerando que a Emenda Constitucional de Revisão nº 4/94 fez inserir sob o ângulo pedagógico no § 9º do artigo 14.
Indaga-se: a quem está dirigida a referência contida hoje, reconheço, em bom vernáculo, no § 9º do artigo 14, ao objeto da previsão de casos de inelegibilidade, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato? Ao Judiciário? Trata-se de uma carta em branco quanto a casos de inelegibilidade, para se ter como foi dito por um advogado militante nesta Corte, o implemento da ira cívica? A resposta para mim é desenganadamente negativa. Não somos nós legisladores, não nos podemos substituir ao Congresso Nacional no que ele, muito embora tendo havido a aprovação da Emenda Constitucional de Revisão nº 4/94, em verdadeiro lembrete do que já estaria latente na previsão do § 9º, não veio a alterar a lei de 1990, já que a Emenda Constitucional de Revisão nº 4 é de 1994.
Qual o parâmetro de referência para o caso concreto? É o parâmetro revelado pela Lei Complementar nº 64/90. Se formos a essa lei, veremos no artigo 1º, inciso I, que a inelegibilidade, considerados os processos criminais, está jungida aos condenados criminalmente com sentença transitada em julgado.
Posso substituir, revogando mesmo - e seria uma derrogação - a alínea e? Posso concluir que onde está revelada a inelegibilidade em decorrência da existência de sentença transitada em julgado, leia-se processo em curso? A meu ver ¾ a menos que caminhemos para o estabelecimento no âmbito do próprio Judiciário, em um campo tão restrito como é o campo da inelegibilidade, de situações concretas, ao sabor das circunstâncias reinantes, da quadra vivida no país, que reconheço, realmente é de purificação ¾, enquanto o Direito for ciência, o meio justifica o fim, mas não o fim ao meio, e não temos como olvidar que no caso se exige bem mais para assentar-se a inelegibilidade do que o simples curso de processo.
O julgamento é importantíssimo e certamente não será, em termos de crivo do Tribunal Superior Eleitoral, entendido pela sociedade, que anseia pela correção de rumos objetivando a punição daqueles que de alguma forma se mostrem, pelo menos no campo da presunção, como transgressores da ordem jurídica.
Mas se abandonarmos parâmetros legais, o texto da Carta de 1988, tão pouco amada, se abandonarmos o que se contém na Lei de Inelegibilidades em vigor, para como que fazer surgir uma nova regência em termos jurisprudenciais, é retrocesso; não se coaduna com o Estado democrático de direito que se imagina viver nos dias atuais no Brasil.
Que sirva a decisão do Tribunal Regional Eleitoral até mesmo de advertência, de cobrança à União, como legisladora, às duas Casas do Congresso Nacional ¾ Câmara dos Deputados e Senado da República ¾, mas não há como chegar-se ao endosso, por maior que seja a vontade sob a visão leiga, do que decidido pela Corte Regional do Rio de Janeiro.
Repito sempre: paga-se um preço por se viver em uma democracia, em um Estado democrático de direito, e a meu ver, esse preço é módico, é um preço ao alcance, em termos de satisfação, de qualquer cidadão, qual seja, o respeito irrestrito às regras em vigor e ao nosso sistema, não de direito costumeiro, mas de direito posto e subordinante.
Reconhecendo, reafirmo, a valia ¾ como disse fui mal compreendido por certo setor da imprensa, como se já estivesse adiantando o meu ponto de vista de endosso ao que decidido pela Corte do Rio de Janeiro ¾ do pronunciamento em termos de advertência, em termos de escancaramento da fragilidade da legislação existente, acompanho o ministro Marcelo Ribeiro no sentido de prover o recurso interposto.
(...)."
4. É por aqui mesmo que encerro este breve apanhado do sucedido na assentada do dia 5 de setembro e passo ao voto que me cabe proferir, por dever de ofício.
VOTO
Feito o relatório, passo ao voto.
5. De saída, conheço do recurso, por entender presentes os pressupostos do seu cabimento. Assim como fez o douto relator do feito, ministro Marcelo Ribeiro, logo seguido pelo voto-vogal do ministro Marco Aurélio.
6. Quanto ao mérito, permito-me lembrar que ele bem cabe na seguinte pergunta: pode um Tribunal Regional Eleitoral negar registro de candidatura a cargo político-eletivo, sob o fundamento de estar o candidato a responder por um número tal de processos criminais que, de parelha com certos fatos públicos e notórios, caracteriza toda uma crônica de vida sinuosa, ao invés de retilínea? Todo um histórico de condutas profissionais, políticas e sociais de permanente submissão a questionamentos morais e jurídicos? Um modo pessoal de ser e de agir aferrado à sempre condenável idéia de que "os fins justificam os meios"?
7. Em diferentes palavras: a decisão ensejadora do presente recurso ordinário podia inferir ¾ como efetivamente inferiu ¾ que o grande número de ações criminais a que responde o recorrente faz parte de uma trajetória de vida que se marca por um deliberado dar às costas aos valores mais objetivamente prestigiados pelo Direito e pela população brasileira em geral? Um se manter notoriamente à distância do que a sociedade tem, objetivamente, por "bons costumes"? Tudo a compor um quadro existencial ou vida pregressa não-rimada com a responsabilidade, autenticidade e moralidade que a mais elementar razão exige para o exercício dos cargos de representação político-eletiva?
8. Se afirmativa a resposta, isso já não significaria que o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro estaria a assentar hipótese de inelegibilidade nem prevista na Constituição nem na Lei Complementar nº 64/90? Ou, perguntando por outro viés: tal inferência não corresponderia a instituir condição de elegibilidade não-cogitada pelo dispositivo constitucional especificamente versante do tema, que é, precisamente, o §3º do art. 14? Nem pelo § 1° do art. 11 da Lei Federal nº 9.504/97, também cognominada de "lei das eleições"?
9. Bem, tais perquirições acerca de condições de elegibilidade e fatores de inelegibilidade estão a desafiar, penso, um ancoradouro normativo a que somente se pode chegar pela via do método de interpretação que toma o conhecido nome de "sistemático". Método "sistemático" ou "contextual", cuja função eidética é procurar o sentido peninsular da norma jurídica; isto é, o significado desse ou daquele texto normativo, não enquanto ilha, porém enquanto península ou parte que se atrela ao corpo de dispositivos do diploma em que ele, texto normativo, se ache engastado. Equivale a dizer: por esse método de compreensão das figuras de Direito o que importa para o intérprete é ler nas linhas e entrelinhas, não só desse ou daquele dispositivo em particular, como também de toda a lei ou de todo o código de que faça parte o dispositivo interpretado. Logo, o que verdadeiramente importa é fazer uma interpretação casada do texto-alvo ou do dispositivo-objeto, e não apenas uma exegese solteira.
10. Mais que isso, o método sistemático de interpretação jurídica é o que possibilita detectar sub-sistemas no interior de um dado sistema normativo. Sub-conjuntos, então, nos quadrantes de um único ou um só conjunto-continente de normas. Como entendo ser o caso dos presentes autos, versantes, basicamente, dos mencionados temas das "condições de elegibilidade" e das "hipóteses de inelegibilidade" político-eletiva.
11. Explico. Os temas da elegibilidade e da inelegibilidade, agitados nos autos deste recurso ordinário, são o próprio conteúdo semântico de dispositivos constitucionais que se enfeixam no capítulo que outro nome não podia ter senão "Dos Direitos Políticos" (capítulo V do título de nº II). Direitos Políticos traduzidos, basicamente, nos atos de participação em processo de eleição geral dos candidatos a cargo de representação política. Ora titularizados pela figura do eleitor, ora pelo candidato mesmo. E que, pela sua extrema relevância, são direitos subjetivos que fazem parte do rol dos "Direitos e Garantias Fundamentais" (título II da Constituição).
12. Está-se a lidar, portanto, com uma categoria de direitos subjetivos que se integram na lista dos direitos e garantias fundamentais. Porém ¾ ressalve-se ¾, gozando de perfil normativo próprio. Regime jurídico inconfundível com a silhueta normativa dos outros direitos e garantias também rotulados como fundamentais, de que servem de amostra os direitos individuais e coletivos e os direitos sociais. O que já antecipa que o particularizado regime jurídico de cada bloco ou categoria de direitos e garantias fundamentais obedece a uma lógica diferenciada. Tem a sua peculiarizada ontologia e razão de ser.
13. Com efeito, os direitos e garantias fundamentais se alinham em blocos ou subconjuntos diversificados pela clara razão de que eles não mantêm vínculo funcional imediato com os mesmos princípios constitucionais estruturantes. É como dizer: trata-se de direitos e garantias que, operacionalmente, se vinculam mais a uns proto-princípios constitucionais do que a outros. Mais que isso, cada bloco desses direitos e garantias fundamentais tem a sua própria história de vida ou o seu inconfundível perfil político-filosófico. Um perfil político-filosófico, atente-se, que é a própria justificativa do vínculo funcional mais direto com determinados princípios constitucionais do que com outros.
14. Nessa vertente de idéias, veja-se que o segmento dos "direitos e deveres individuais e coletivos" (capítulo I do título II da Constituição Federal) está centralmente direcionado para a concretização do princípio fundamental da "dignidade da pessoa humana" (inciso III do art. 1º). A reverenciar por modo exponencial, então, o indivíduo e seus particularizados grupamentos. A proteger mais enfaticamente os bens de "personalidade individual" e de "personalidade corporativa", em frontal oponibilidade à pessoa jurídica do Estado. Tudo de acordo com o modelo político-liberal de estruturação do Poder Público e da sociedade civil, definitivo legado do iluminismo enciclopedista que desembocou na Revolução Francesa de 1789.
15 Já o subsistema dos direitos sociais (arts. 6º e 7º da Magno Texto), volta-se ele para a centrada concretização do princípio fundamental que atende pelo nome de "valores sociais do trabalho" (inciso IV do art. 1º da CF). Especialmente o trabalho que se passa no âmago das chamadas relações de emprego, na pré-compreensão de que os proprietários tão-só de sua mão-de-obra carecem bem mais de tutela jurídica do que os proprietários de terra, capital, equipamentos, tecnologia, patentes e marcas empresariais. Pré-compreensão, essa, que corresponde ao perene legado das doutrinas que pugnavam, desde os ano 40 do século XIX aos anos 30 do século XX, por um Estado Social de Direito. Estado também designado por "Estado do Bem-estar Social", "Estado-providência" ou "Wellfare State".
16. E o bloco dos direitos políticos? Bem, esse é o que se define por um vínculo funcional mais próximo desses dois geminados proto-princípios constitucionais: o princípio da soberania popular e o princípio da democracia representativa ou indireta (inciso I do art. 1º, combinadamente com o parágrafo único do art. 1º e o "caput" do art. 14, todos da Constituição de 1988). Dois geminados princípios que também deitam suas raízes no Estado liberal, porém com esta marcante diferença: não são as pessoas que se servem imediatamente deles, princípios da soberania popular e da democracia representativa, mas eles é que são imediatamente servidos pelas pessoas. Quero dizer: os titulares dos direitos políticos não exercem tais direitos para favorecer imediatamente a si mesmos, diferentemente, pois, do que sucede com os titulares de direitos e garantias individuais e os titulares dos direitos sociais. Veja-se que, enquanto os detentores dos direitos sociais e dos direitos individuais e coletivos são imediatamente servidos com o respectivo exercício, e só por defluência ou arrastamento é que resultam servidos os princípios da valorização do trabalho e da dignidade da pessoa humana, o contrário se dá com o desfrute dos direitos políticos. Aqui, o exercício de direitos não é para servir imediatamente a ninguém, mas para servir imediatamente a valores: os valores que se consubstanciam, justamente, nos proto-princípios da soberania popular e da democracia representativa.
17. Insista-se na diferenciação para ficar bem claro que os magnos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho existem para se concretizar, imediatamente, no individualizado espaço de movimentação dos seus titulares. Logo, os dois estruturantes princípios a servir primeiro ¾ e só depois a se servir, por gravidade ou arrastamento ¾ do particularizado gozo dos respectivos direitos subjetivos. Estes a primeiro luzir, para somente depois se ter por concretamente imperantes aqueles dois proto-princípios constitucionais. Ao contrário (renove-se o juízo) do que sucede com os estruturantes princípios da soberania popular e da democracia representativa, pois, aqui, quem primeiro resplende são valores ou princípios. O eleitor não exerce direito para primeiramente se beneficiar. Seu primeiro dever, no instante mesmo em que exerce o direito de votar, é para com a afirmação da soberania popular (valor coletivo) e a autenticidade do regime representativo (também valor de índole coletiva). O mesmo acontecendo com o candidato a cargo político-eletivo, que só está juridicamente autorizado a disputar a preferência do eleitorado para representar uma coletividade territorial por inteiro. Jamais para presentar (Pontes de Miranda) ou servir a si próprio.
18. Está aqui a razão pela qual a Magna Carta brasileira faz do direito ao voto uma simultânea obrigação (§ 1º do art. 14). Assim como as leis eleitorais substantivas tanto punem o eleitor mercenário como o candidato comprador de votos. Mais ainda, esta a razão por que a nossa Constituição forceja por fazer do processo eleitoral um exercício da mais depurada ética e da mais firme autenticidade democrática. Deixando clarissimamente posto, pelo § 9º do seu art. 14, que todo seu empenho é garantir a pureza do regime representativo, traduzida na idéia de "normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso de exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta". Isso de parelha com a proteção da "probidade administrativa e a moralidade para o exercício do cargo, considerada a vida pregressa do candidato".
19. Ainda com esse propósito saneador de costumes é que a Constituição-cidadã, a Constituição-coragem de Ulysses Guimarães prossegue a descrever hipóteses de inelegibilidade (§ 4º e § 7º do art. 14) e de irreelegibilidade (§§ 5º e 6º do mesmo art. 14), não sem antes dispor sobre as próprias condições de elegibilidade de todo e qualquer candidato (§ 3º, ainda uma vez, do mesmo art. 14). E como se fosse pouco, faz-se de matriz da ação de impugnação do mandato já conquistado (§§ 10 e 11 do mesmíssimo art. 14) e empreende um verdadeiro cerco ético-político-penal a deputados, senadores e presidente da República, sob a explícita possibilidade de cominação de perda de mandato (arts. 54 e 55 e mais os arts. 52, parágrafo único, e 85).
20. Impossível, portanto, deixar de reconhecer que os direitos políticos de eleger e de ser eleito se caracterizam por um desaguadouro impessoal ou coletivo. Estão umbilicalmente vinculados a valores, e não a pessoas, sob o prisma da benfaseja imediatidade do seu exercício. A exigir o reconhecimento de uma ontologia e operacionalidade próprias, bem distanciadas daquelas que timbram os outros dois paradigmáticos modelos de direitos e garantias fundamentais.
21. Bem vistas as coisas, é nesse contexto mais abrangente da interpretação sistemática que se pode entender o tema do exercício dos direitos políticos como uma necessária via de legitimação dos que se investem em cargo político-eletivo. Um mecanismo que se define como elemento conceitual da soberania popular e da democracia representativa, essas duas irmãs siamesas do Estado Liberal de Direito.
22. Pois bem, como falar de exercício dos direitos políticos é falar da parelha temática elegibilidade/inelegibilidade, cada uma destas duas categorias não pode comportar interpretação que, a pretexto de homenagear este ou aquele dispositivo isolado, force a Constituição a cumprir finalidades opostas àquelas para as quais se preordenou. Donde afirmar a ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, que "eventualmente, há que se sacrificar a interpretação literal e isolada de uma regra para se assegurar a aplicação e o respeito de todo o sistema constitucional" (voto condutor do acórdão proferido no habeas corpus nº 89.417-8, Rondônia, em 22.8.06). E, na lição do ministro César Asfor Rocha, o que se deve é "evitar menoscabo aos superiores comandos e valores constitucionais, autênticos princípios, que devem iluminar qualquer exegese das normas da Carta Magna, atendendo às suas sugestões, ainda que eventualmente uma norma inferior lhe contravenha o rumo" (voto condutor do acórdão proferido no RO nº 912/RR).
23. Assim é que, ao arrolar as condições de elegibilidade (§ 3º do art. 14), a Constituição nem precisou dizer que a idoneidade moral era uma delas; pois o fato é que a presença de tal requisito perpassa os poros todos dos numerosos dispositivos aqui citados. O que por certo inspirou o legislador ordinário a embutir nas condições de registro de candidatura a cargo eletivo a juntada de "certidões criminais fornecidas pelos órgãos de distribuição da Justiça Eleitoral" (inciso VI do art. 11 da Lei nº 9.504/97). Cabendo aos órgãos desse ramo do Poder Judiciário, também por certo, dizer se em face da natureza e da quantidade de eventuais processos criminais contra o requerente, aliadamente a outros desabonadores fatos públicos e notórios, fica suficientemente revelada uma "vida pregressa" incompatível com a dignidade do cargo em disputa. Função integrativo-secundária perfeitamente rimada com a índole da Justiça Eleitoral, de que serve como ilustração este dispositivo da Lei Complementar nº 64/90:
"O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público e a lisura eleitoral" (art. 23, sem os caracteres em negrito).
24. O mesmo raciocínio é de se aplicar, em tema de perda ou suspensão dos próprios direitos políticos, à exigência constitucional de trânsito em julgado de condenação criminal (inciso III do art. 15 da CF). É que esse trânsito em julgado somente foi exigido na lógica pressuposição de estar o candidato a responder por um ou outro processo penal. Por uma ou outra situação de eventual percalço jurisdicional-penal, de que ninguém em sociedade está livre. Jamais pretendeu a Lei das Leis imunizar ou blindar candidatos sob contínua e numerosa persecutio criminis, como é o caso dos autos. Pois isto equivaleria a fazer do seu tão criterioso sistema de comandos um castelo de areia. Um dar com uma das mãos e tomar com a outra, para evocar a sempre referida metáfora de Ruy Barbosa sobre como não se deve interpretar os enunciados jurídico-positivos, a partir da Constituição mesma.
25. Deveras, pelo que se vê dos autos e de consulta ao site da Justiça Federal de 1ª Instância do Rio de Janeiro e da Justiça Federal de Brasília, também da 1ª Instância, o recorrente está a responder por nada menos que 8 (oito) ações penais, além de 1 (uma) ação civil pública por improbidade administrativa, a saber:
1) 2003.51.01.505442-0 :: Crime de Falsificação de Documento Público, 8ª Vara Federal Criminal do RJ :: Há condenação sem trânsito, pendência de Recurso ao TRF 2ª Região;
2) 96.0067579-1 :: Crime Contra o Sistema Financeiro Nacional, Evasão de Divisas, 5ª Vara Federal Criminal do RJ :: Sem condenação
3) 2003.51.01.505658-1 :: Crime Tributário, Ausência de Recolhimento de Contribuição Previdenciária :: Sem condenação
4) 2004.51.01.530476-3 :: Crime Tributário, Ausência de Recolhimento de Contribuição Previdenciária :: Sem condenação
5) 2006.001.055165-7 :: 31ª Vara Criminal da Comarca da Capital/SP :: Crime de Furto (artigo 155, caput, CP).
6) 1999.001.026858-4 :: 38ª Vara Criminal Injúria e Difamação (artigo 139 e 147 do CP).
7) 2004.800.050044-5 : 8º JECRIM.
8) 2005.700.059525-4 :: 1ª Turma Recursal Criminal :: Lesão Corporal :: Condenação em 24.3.2006. 6 meses de detenção. Substituição por prestação pecuniária em favor da vítima.
9) 2004.34.00.048357-0 :: Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa :: 13ª Vara Federal da Justiça Federal de Brasília.
25. Foi precisamente essa incomum folha corrida, associada a outros fatos públicos e notórios de objetiva reprovabilidade, que levou o egrégio Tribunal Regional do Rio de Janeiro à negativa de registro da candidatura do recorrente. Parecendo-me que assim procedeu com razoabilidade, considerada a âncora normativo-constitucional e também legal de que fez uso na decisão recorrida. Tudo de acordo com uma postura interpretativa que busca efetivar a ineliminável função de que se dota o Direito para qualificar os costumes. Os eleitorais à frente.
26. Julgo improcedente o recurso.
27. É como voto.
Brasília, 14 de setembro de 2006. 14/09/2006 - Voto do ministro Cezar Peluso - Eurico 3 a 1
Em seguida, o ministro Cezar Peluso acompanhou a tese do relator, ministro Marcelo Ribeiro. O ministro Cezar Peluso destacou a garantia constitucional da presunção da inocência "sobre qualquer modalidade de sanção ao patrimônio jurídico do réu a título de juízo de culpabilidade, senão após o trânsito em julgado", ao citar o artigo 15, inciso III da Constituição Federal.
O ministro ainda ressaltou que a própria Constituição determina que uma lei complementar iria estabelecer os casos de inelegibilidade. "É preciso que a lei defina a tipicidade do fato [previsão na lei] que caracterize a inelegibilidade, caso contrário, não há nada que se possa fazer", enfatizou o ministro Cezar Peluso. O ministro reforçou que, com base na Constituição, "nenhuma medida pode ser justificada a título de um juízo de culpabilidade precário emitido por quem quer que seja".
Logo após o voto do ministro Cezar Peluso, o ministro César Asfor Rocha pediu vista dos autos.
19/09/2006 - Voto-vista do ministro César Asfor Rocha - Eurico 3 a 2
Na retomada do julgamento do Recurso Ordinário nesta terça-feira, o ministro César Asfor Rocha votou pelo indeferimento da candidatura de Eurico Miranda, confirmando, dessa forma, a decisão do Tribunal Regional Eleitoral fluminense (TRE-RJ). Ele havia pedido vista do processo na sessão da última quinta-feira (14), após o voto-vista do ministro Carlos Ayres Britto, que abriu a divergência.
Em seu voto, o ministro César Asfor Rocha observou que não se pode ignorar a força normativa da Constituição Federal, ao impor como princípios que interessam à definição de quem pode concorrer a cargos eletivos os artigos 14, parágrafo 9º, que versa sobre a proteção da moralidade e da probidade pública e, em seu artigo 37, valores expressos para ocupantes de cargos na administração pública.
O ministro César Asfor Rocha ressaltou que, se de um lado, a Lei Complementar 64/90 (Lei das Inelegibilidades), preconiza a necessidade de trânsito em julgado para impedir uma candidatura a cargo eletivo, prevê, por outro, a possibilidade de a própria Justiça formar uma convicção pela livre apreciação dos fatos notórios e provas produzidas se o candidato pode ocupar tais cargos e preservar o interesse público.
Para embasar esse entendimento em seu voto, o ministro citou o artigo 23 da Lei das Inelibilidades, segundo o qual "o Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para as circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público da lisura eleitoral".
"Como se vê, o desafio da Justiça Eleitoral é maior e mais complexo de saber se a norma incide ou não sobre as que não tem trânsito em julgado, mas têm decisões penais recorríveis e pendentes em outras instâncias", afirmou o ministro César Asfor Rocha. "Tenho a convicção de que a existência de eventuais condenações é da maior relevância, sendo de menor importância se as condenações não transitaram (em julgado, isto é, são irrecorríveis)", completou o ministro.
"A competência da Justiça Eleitoral não pode ser encurtada por normas inferiores à Constituição Federal", ponderou o ministro César Asfor Rocha, ao listar posteriormente uma série de crimes que, em tese, não constam da Lei das Inelegibilidades e, assim, não causariam imediato impedimento do candidato de concorrer a um cargo eletivo.
"Com efeito, sopesando os princípios cogitados da presunção de inocência e da proteção da probidade e da moralidade administrativa, e valendo-me da atribuição que o artigo 23 da Lei Complementar 64/90 (Lei de Inelegibilidades) e da outorga a jurisdição eleitoral, tenho que a existência de uma condenação pelo crime de falsificação de documento é indício bastante e presunção satisfatória para desabonar completamente a reputação do recorrente para o fim aqui colimado, que eu aponto como desrecomendável a assunção de cargo eletivo, tendo em vista e atentando para essas circunstâncias de interesse público, de lisura no pleito, a sua não participação no certame é medida que se impõe", concluiu.
Íntegra do voto
"Após os votos dos eminentes Ministros Marcelo Ribeiro (Relator), Marco Aurélio e Cezar Peluso, dando provimento a este recurso, e do voto-vista do eminente Ministro Carlos Ayres de Britto, negando-lhe provimento, pedi vista para melhor refletir, e com mais vagar, como a importância do tema o merece, sobre o alcance, o sentido e o significado da causa legal complementar de inelegibilidade, albergada no art. 1º, I, "e" da LC 64/90, que estatui que são inelegíveis os (cidadãos) condenados pela prática dos crimes ali indicados, desde que transitada em julgado a sentença respectiva.
Instiga-me sobremaneira a cláusula da Lei Complementar que exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, para que a decisão do Juízo Criminal passe a lavrar o efeito cogitado na norma positiva de Direito Eleitoral, qual seja: o de sustar a elegibilidade do cidadão, mesmo quando contra ele já se lavrou decisão final de condenação por crime contra a Administração Pública ou outro de igual (e até maior) poder ofensivo dos valores sociais protegidos pelo Direito, mas ainda não consolidada essa condenação em res judicata.
Convém lembrar que a introdução da exigência de sentença penal condenatória transitada em julgado, como consta do referido inciso legal complementar, veio substituir dispositivo da LC 5/70, que se contentava, como bem recordou o eminente Ministro Marco Aurélio em seu judicioso voto, proferido com a erudição e a veemência com que usualmente defende as suas posições, com a só existência de denúncia criminal recebida pelo órgão judicial competente, para que se definisse a inelegibilidade do pretendente à disputa de cargo político.
Parece-me do mais realçado valor exegético essa mudança na norma de regência de inelegibilidade, quando pertinente à prévia existência de condenação criminal do postulante a cargo eletivo, cumprindo frisar que a norma anterior, exigente apenas da denúncia recebida, deu lugar à atualmente vigente, que exige a mais conspícua das figuras processuais, ou seja, a consolidação da decisão judicial penal condenatória em coisa julgada.
Muito mais do que a compreensão da norma eleitoral afluente, de si mesma portadora de alta definição jurídica, releva anotar a mudança de orientação legal quanto ao tema inelegibilidade, sendo isso de enorme valor hermenêutico, pois representa uma indiscutível reavaliação objetiva de situação e a adoção de solução que se pode dizer diametralmente oposta à anterior.
Por outro lado, deve-se deixar de logo bem assinalado que esse dispositivo legal complementar (art. 1º, I, "e" da LC 64/90) foi instituído no ordenamento jurídico brasileiro, quando reinava uma espécie de sacralidade com relação à coisa julgada, em virtude da qual a ela se atribuía um valor total, absoluto e insuperável, impedindo completamente quaisquer discussões ou reexames sobre as matérias nela inseridas.
Não se pode perder de vista que o instituto da coisa julgada serve, há séculos, aos valores da estabilidade, da segurança e da certeza jurídicas, tendo se refinado como instituto processual do mais largo apreço na doutrina dos especialistas e na Jurisprudência dos Tribunais, figurando, ao lado da presunção de inocência, como um dos mais caros índices culturais de evolução jurídica; se estou bem recordado das palavras eruditas e judiciosas do eminente Ministro Cezar Peluso, que, na verdade, proferiu autêntica aula magna acerca da evolução da res judicata, com a largueza própria de sua sólida formação jurídica, a elaboração conceitual da presunção de inocência teve as suas mais precisas idéias a partir da segunda metade do século XVIII, com a iluminada contribuição do famoso Marquês de Beccaria, que tanto influenciou os Enciclopedistas Franceses de 1789.
Na seqüência histórica, mas ainda na seara do Direito Criminal, importa relembrar a contribuição de Giovanni Manzinni, cuja influência no penalismo italiano é reconhecida e proclamada por todos, conforme foi aqui também assinalado no voto do Ministro Cezar Peluso; por último, cabe, novamente, referir que a Carta das Nações Unidas de 1945 consagrou esse instituto, que veio sendo objeto de progressivo reconhecimento constitucional nas Constituições escritas ocidentais, não sendo possível referir, nesta altura, qual sistema jurídico contemporâneo deixaria de consagrá-lo; mas é mister se dizer que os institutos da coisa julgada e o da presunção de inocência corporificam, no Processo Penal moderno, e, por extensão nas ações próprias do Direito Sancionador contemporâneo, talvez a síntese mais completa e perfeita das pessoas que se vêem processadas.
No Brasil, a presunção de inocência tem o nível de direito/garantia constitucional, a afiançar que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5º, LVII), significando que, antes de tal evento processual, todos são tidos e havidos como inocentes, ou seja, não passíveis de sofrerem qualquer redução ou restrição de direito, em razão do processo penal.
Entretanto - e este é o ponto para o qual a minha atenção foi chamada - a hermenêutica constitucional e jurídica contemporânea é hoje beneficiária da apreciação que deriva da força dos princípios jurídicos gerais e constitucionais, de tal modo que todos os institutos da velha hermenêutica (expressão do Professor Paulo Bonavides) têm indispensavelmente de ser valorizados, hoje em dia, à luz desses elementos da ordem jurídica (os princípios), sem cuja exata compreensão a atividade exegética se torna bem próxima da repetição servil da letra do texto.
Na opinião deste acatado e insigne Mestre cearense, a interpretação tradicional da Constituição, que utiliza os métodos clássicos da interpretação jurídica, considera a Carta Magna em seu sentido apenas estrito, deixando à margem da sua exegese a compreensão mais larga dos seus conteúdos, o que deve ser atribuído à visão do jurista técnico que, em razão desse viés cognitivo, fica tolhido de conhecer a verdade constitucional em sua essência e fundamento (Curso de Direito Constitucional, Malheiros, 1999, p. 466).
Estou lembrado, como todos nós o estamos, que a disposição legal complementar do art. 1º, I, "e" da LC 64/90 está ancorada na presunção de inocência da pessoa, uma conquista cultural relevantíssima, dentre muitas outras de magnitude semelhante, representando, inclusive, seguro indicador de desenvolvimento jurídico da sociedade moderna; entre nós, repito, essa conquista tem foros de direito fundamental, inscrito, como deve efetivamente ser, de modo solene, na Carta Magna (art. 5º, LVII), à maneira de um princípio.
Entretanto, adotando-se a interpretação ampla da Constituição, penso ser mister conhecer e mensurar a eficácia de seus princípios, agora dotados de eficácia direta, eis que é incontroversa a assertiva de que a Constituição abriga outros princípios, alguns dos quais voltados à preservação de valores sociais e políticos que ultrapassam o âmbito dos direitos pessoais, que continuam, sem rebuços, merecedores de proteção jurídica, mas somente exercitáveis quando (e se) em harmonia com aqueles outros; aliás, assim mesmo se dá com a propriedade individual (sujeita à desapropriação) ou com a liberdade de empreender (sujeita à função social), para citar apenas esses dois casos de notória exemplaridade.
Evidente que a atuação eficaz dos princípios constitucionais não depende, necessariamente, de mudanças normativas inferiores, podendo o Julgador, atentando ao significado das postulações principiológicas, interpretar as normas inferiores de modo a resguardar a integridade e a soberania dos princípios, realizando a função de interpretar o ordenamento normativo em conformidade com os ditames desses mesmos princípios superiores.
Tenho absoluta convicção de que não anuncio, agora, novidade alguma, ao dizer que a função da exegese constitucional contemporânea tem por escopo essencial, precisamente, tecer a perfeita compatibilização entre os princípios da Carta Magna, esses elementos da macro-estrutura jurídica do ordenamento positivo, não poucas vezes desafiadores de decifração.
A concepção exegética afirmadora da proeminência dos princípios, aliás, de notória importância na história mais recente do Direito, máxime do Direito Constitucional, os vê associados às noções de fundamentos, bases, limites ou referências do próprio conjunto normativo, mas sempre numa posição de supralegalidade, veiculando-se, ainda, a idéia de que cumpre afirmar essa posição em relação a esse mesmo conjunto normativo, como se vê nesta passagem do reverenciado jus-filósofo italiano Norberto Bobbio:
Os princípios gerais são apenas, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. O nome de princípios leva a engano, tanto que é velha a questão entre juristas se os princípios gerais são normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras. E esta é também a tese sustentada por Crisafulli. Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie animal obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna? Para regular um comportamento não-regulamentado: mas então servem ao mesmo escopo a que servem as normas expressas. E por que então não deveriam ser normas? (Teoria do Ordenamento Jurídico, tradução de Maria Celeste dos Santos, Brasília, UnB, 1997, p. 159/159).
Por outro lado, cuido de lembrar que, no ordenamento jurídico, todos os institutos possuem ou assumem uma função determinada e estratégica, não havendo instituto de Direito que seja dela desprovido; essa função é manifestada aos destinatários do instituto por meio de prescrições ou comandos, como bem explica o já citado Professor Norberto Bobbio, enfatizando que um corpo de leis tende a eliminar (de si) tudo o que não é preceito (Teoria da Norma Jurídica, São Paulo, Edipro, 2003, p. 78), daí se dizer que o ordenamento jurídico é um universo harmônico de vários preceitos e várias normas, algumas escritas e outras não, como os princípios.
Faço esta breve digressão (embora muitos a possam considerar desnecessária), para deixar enfatizado que a exegese constitucional não pode deixar à margem do sistema jurídico a força normativa dos princípios, na feliz expressão do Professor Paulo Bonavides, daí surgir, como elemento axial dessa mesma exegese, a compreensão de sua função.
No tocante ao exame do presente Recurso Ordinário, é certo que o princípio da presunção de inocência não pode ser desconhecido do exegeta constitucional, mas parece-me igualmente certo que ele (o intérprete da Constituição) também não pode ignorar, no que interessa aos institutos do Direito Eleitoral, a força normativa dos princípios da Carta Magna, em especial o dizer contido no art. 14, parág. 9º, ao impor a proteção da probidade e da moralidade públicas, quando se cuida de preconizar os casos em que ao cidadão se proíbe o direito de concorrer a cargo eletivo.
Na verdade, não se ignora que esses valores constituem princípios constitucionais expressos da Administração Pública (art. 37 da Carta Magna), cuja preservação há de ser provida por meio da atividade jurisdicional em geral e, em particular, por meio da atuação dos órgãos da jurisdição eleitoral, já que se trata de princípio que interessa máxima e diretamente à definição dos que podem concorrer a cargos eletivos.
Pondero que nem mesmo se discute, até porque sobre isso não paira dúvida alguma, que os institutos do Direito Penal comum e os do Direito Processual Penal, este com sua vasta gama de proteções à pessoa, são todos plenamente aplicáveis aos casos de imposição de quaisquer sanções, seja de que natureza forem; evidente, portanto, que a presunção de inocência atua sem restrições no campo do Direito Eleitoral Penal. Esse ramo jurídico integra, sem dúvida alguma, o moderno Direito Sancionador, cuja abrangência alcança quaisquer condutas infringentes de padrões normativos.
Contudo, é preciso pôr em destaque que, no procedimento de habilitação dos candidatos aos postos eletivos, a atenção da Justiça Eleitoral não deve se focar tão só, unicamente e apenas na identificação dos cidadãos eventualmente condenados por decisões criminais irrecorríveis, eis que esses, com certeza jurídica suficiente, estão, sem dúvida alguma, alcançados pela norma constitucional excludente da sua capacidade de disputar o pleito, como resulta da sua simples leitura.
Ao meu ver, o indeferimento do pedido de registro de candidatura de quem está condenado criminalmente por sentença penal transitada em julgado é daqueles pleitos sobre os quais se pode dizer tratar-se de juridicamente impossível, porque a norma de exclusão não comporta qualquer interpretação que desvalorize esse inevitável resultado.
Repetindo, por outras palavras, esta idéia, reitero que, nos casos de inelegibilidade previstos na Constituição e/ou na LC 64/90, a atividade jurisdicional eleitoral é simples ou sumária, pois não assiste a essa jurisdição especializada transpor ou suspender ou eliminar a eficácia dessas situações.
Todavia, no contra-ponto desta assertiva, isso não significa dizer que seja automático o deferimento de pedidos de registro de candidaturas, apenas porque inexiste, em relação ao postulante, decisão penal condenatória transitada em julgado, pois outros fatores pesam na avaliação judicial eleitoral, que não está reduzida à constatação de ausência de condenação penal irrecorrível.
Na verdade, o art. 23 da LC 64/90 é solarmente explícito quanto ao procedimento de apreciação jurisdicional dos pedidos de registro de candidatos, enunciando mensagem de incontornável definição:
Art. 23 - O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.
Parece-me, com a devida vênia dos que discordarem, que esta citada norma da LC 64/90 não orienta os casos em que o postulante ao registro de candidato tem lavrada contra si sentença penal condenatória transitada em julgado, mas sim os casos em que, mesmo sem essa condenação definitiva, os candidatos, por terem sido condenados, ainda que sem trânsito em julgado, não se apresentam como portadores de vida pregressa recomendável ou isenta de elementos indiciários que apontem no sentido da imoralidade pública ou da improbidade administrativa ou capazes de fazer periclitar o superior interesse público da lisura do pleito.
Como se vê, o desafio da Justiça Eleitoral é maior e muito mais complexo quando se cogita, como agora, de saber se a dita norma constitucional proibitiva incide (ou não) sobre as situações dos que, não tendo contra si decisões penais condenatórias trânsitas em julgado, têm, contudo, decisões penais ainda recorríveis, ou mesmo já recorridas, pendentes nas instâncias recursais próprias, pela prática de qualquer dos crimes listados no art. 1º, I, "e" da LC 64/90.
Tenho a segura convicção de que a existência de eventuais condenações criminais é da maior relevância para a jurisdição eleitoral, sendo de menor importância o fato de essas condenações já haverem transitado em julgado, porque a Justiça Eleitoral não está, ao apreciar o pedido de registro de candidaturas, aplicando sanção penal (que efetivamente dependeria do trânsito em julgado da condenação), mas avaliando se o postulante ao registro reúne as condições legais e exigidas.
Penso que, havendo condenação penal recorrida, haveria, no mínimo, a necessidade de se analisar, em cada caso concreto, a viabilidade material do recurso interposto, em todos os seus aspectos, não bastando a simples interposição do apelo para já se ter por suspensa a inelegibilidade, porque esta (a inelegibilidade) não é pena criminal em sentido estrito.
Ao meu ver, é da mais avultada importância se deixar definitivamente assentado que a apreciação, pela Justiça Eleitoral, de pedido de registro de candidatura a cargo eletivo, se desenvolve em ambiente processual de dilargada liberdade judicial de pesquisa e ponderação dos elementos que acompanham e definem a reputação do pretendente. Se assim não fosse, seria a Justiça Eleitoral completamente acrítica e infensa aos valores que busca justamente proteger, quais sejam, a probidade e a moralidade do futuro desempenho do ungido pelas urnas.
Ora, a atividade judicial cognitiva está hoje qualificada, com toda a justeza, pela ausência de restrições apriorísticas à formação do juízo; hoje, como se sabe, o Juiz detém não apenas o poder, porém mesmo o dever, de impulsionar a atividade probatória, ainda que as partes dela se desinteressem ou mesmo eventualmente a ela se oponham.
Ao deferir (ou indeferir) pedido de registro de candidato, o órgão da Justiça Eleitoral expressa um assentimento (ou uma recusa) à qualificação cívica do postulante, em atividade de avaliação que não deve ficar sempre limitada ou jungida aos resultados de outras avaliações judiciais, precedentes, emanadas de outros órgãos da Magistratura Nacional, por mais reverenciados que sejam, em virtude de suas posições na hierarquia interna do sistema.
Não chego ao ponto de afastar da disputa, embora tentado a isso seja, aqueles que se encontram em situações em que essa qualificação cívica do cidadão se acha apenas percutida por denúncia criminal, mesmo tratando-se de denúncia calcada em elementos de seriedade confirmados, com amplos dados indiciários, e ainda que não se possa considerar o denunciado em situação idêntica à daquele cidadão que não tem contra si denúncia alguma.
Como todos entendemos, a postulação eletiva não é de ser vista como uma pretensão individualista, em que o indivíduo busca obter o máximo proveito de sua atividade; pelo contrário, sobre essas pretensões paira a vocação de bem servir à polis, daí precisamente a idéia platônica de política como a arte de atender às demandas da cidade.
Repito que, por certo, pairarão sobre essas legítimas pretensões individuais os valores maiores e permanentes da ordem democrática e a preocupação em preservá-los contra o desgaste que vem do exercício malsão do poder político, por pessoas civicamente desqualificadas.
Assinalo que a sentença penal condenatória (ainda não trânsita em julgado) não assimila, no sistema jurídico, a eficácia que autoriza a imposição de pena, mas satisfaz plenamente o padrão posto como regra principiológica no art. 14, parág. 9º, da Carta Magna, com a força de afastar a elegibilidade do cidadão.
Não me parece jurídico nem acertado dizer-se que é nenhuma a importância de uma sentença penal condenatória pelo só fato de não haver transitado em julgado, embora esse trânsito seja a condição insuperável de sua execução; se restar afirmado que a sentença penal condenatória não produz resultado algum sobre os elementos da avaliação subjetiva do conceito da pessoa condenada, se estará, no mesmo passo, afirmando que a Justiça Criminal terá submetido o indivíduo a processo fútil, já que o pronunciamento judicial não definitivo o deixaria na mesmíssima situação jurídica do que não se acha condenado.
Ao meu ver, se não se der à condenação penal recorrida essa eficácia, restrita, como se observa, apenas ao direito à elegibilidade, isto é, ao propósito estritamente eletivo, penso que se estará minimizando, ou mesmo deixando-se de reconhecer nesses atos, a função jurídica dos institutos que neles se representam, ou seja, o processo judicial penal e a decisão condenatória são totalmente desinfluentes no que respeita à produção de desconsideração cívica do condenado.
Reitero, com insistência e, por óbvio, que não proponho que a pessoa condenada por sentença penal recorrida ou recorrível, seja de logo submetida à execução criminal, mas apenas que essa pessoa não possa disputar cargo eletivo, tendo em vista a regra de seleção, pelo critério da reputação, que a Carta Magna inscreve no seu art. 14, parág. 9º.
Tenho, por fim, que a inelegibilidade do cidadão, por esses motivos que estou apontando, não há de ser compreendida como pena criminal antecipadamente executada, mas (apenas) como aplicação da força normativa dos princípios democráticos, nos domínios específicos do Direito Eleitoral, que manda que a seleção dos que podem postular cargo eletivo tenha em conta a sua vida pregressa, como meio de preservação do próprio teor de democraticidade do Estado de Direito.
Portanto, não é somente a prática delitiva dos ilícitos penais expressos no art. 1º, I, "e" da LC 64/90 que conduzem à inelegibilidade do candidato, mas inelegibilidade também tem por matriz a condenação criminal pela prática de outros crimes, não listados no referido dispositivo legal complementar; explicando melhor o meu pensamento, proclamo que a ausência de elegibilidade não deriva somente de condenação transitada em julgado, embora esta seja uma hipótese de indiscutibilidade manifesta, mas deriva também de outras hipóteses, qual a condenação não transitada em julgado, albergada na avaliação que o órgão jurisdicional eleitoral deve fazer dos pedidos de registro, nos termos do art. 23 da LC 64/90, antes transcrita.
Reconheço que o art. 1º, I, e da LC 64/90 está limitado pela dicção do art. 14, parág. 9º da Carta Magna, prevendo que lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, dando margem ao entendimento de que os crimes não previstos na LC que disciplina aquele item constitucional não gerariam, em relação ao seu agente, a inelegibilidade em apreço.
Por outro lado, a segurança jurídico-penal também recomendaria, em princípio, que se tivesse aquele rol da LC 64/90 como taxativo, inclusive porque essa orientação jus-metodológica seguiria ao pé da letra a norma magna do art. 14, parág. 9º da Constituição.
Porém, com a devida vênia, a lógica jurídica aplicável aos casos de inelegibilidade não anda à cata de ilícitos penais, mas sim em busca de indicadores de inadequação do candidato à obtenção do registro, e essa função preservadora da moralidade e da probidade públicas não pode ficar restrita a certos e determinados crimes, como se os demais não gerassem a restrição em apreço.
Como se sabe, a interpretação literal, sobretudo a interpretação literal dos dispositivos da Constituição, não é o melhor dos métodos de apreensão do significado das normas legais, devendo mesmo ceder o passo a outros que sejam mais hábeis à tarefa de compreensão jurídica, dentre os quais avulta a interpretação funcional-teleológica, que mantém no mais alto nível de consideração a mensagem posta pelo legislador constituinte originário, não permitindo que se perca a sua eficácia pelas armadilhas, restrições e atalhos próprios da legislação infra-constitucional.
Como já destacado anteriormente, a recomendação mais constante dos hermeneutas constitucionais é a de que a interpretação da Constituição se faça pelos seus princípios, ao invés de se fazer pelas suas palavras; neste caso, restaria inócua a mensagem do art. 14, parág. 9º da Carta Magna, se lhe fosse dada a interpretação literal, pois ficariam fora da sua incidência saneadora os praticantes de crimes afins, conexos, instrumentais ou de qualquer modo vinculados aos listados no art. 1º, I, e da LC 64/90.
Nem precisa se gastar muito esforço para demonstrar que os condenados por crimes conexos ou instrumentais dos listados nesse dispositivo também são inelegíveis, embora não se possa dizer (e nem prever) que outros crimes seriam esses.
Como muito bem observa a Professora Ada Pellegrini Grinover (As Nulidades no Processo Penal, São Paulo, RT, p. 47), a função jurisdicional, que é uma só e atribuída abstratamente aos órgãos do Poder Judiciário, passa por um processo gradativo de concretização, até chegar-se à determinação do Juiz competente para o processo: por meio das regras constitucionais e legais que atribuem a cada órgão o exercício da jurisdição com referência a dada categoria de causas (regras de competência), excluindo-se dos demais órgãos jurisdicionais, para que só aquele deva exercê-lo em concreto.
Ora, seria de todo inaceitável que um caso que fosse de inelegibilidade escapasse ao juízo ou à avaliação da jurisdição eleitoral, pois se estaria atribuindo a outro órgão (excluído da estrutura da jurisdição eleitoral) uma competência estranha às suas e, ao mesmo tempo, sobreposta à dos órgãos jurisdicionais específicos.
Sendo assim, pela vontade superior da Constituição, a moralidade e a probidade administrativas devem ser eficazmente preservadas e essa preservação, no que compete à Justiça Eleitoral, tem de abranger a sua avaliação ampla, não restrita, de modo que a supremacia jurídica permaneça na Constituição e não nas regras que a complementam.
Retorno ao argumento de que crimes não previstos na LC 64/90 podem, eventualmente, acarretar a inelegibilidade de seus agentes, como, por exemplo (mas não só), quando é instrumental ou conexo com aqueles; dessa forma, afasto a exegese restritiva e reafirmo que a competência da Justiça Eleitoral não pode ser encurtada por normas inferiores à Constituição.
Destarte, ao meu sentir, com a devida vênia dos que pensam em contrário, qualquer indivíduo que tenha a sua vida pregressa (reputação) tisnada por condenação, ainda que sem trânsito em julgado, pelo cometimento de outros graves crimes há de sofrer a restrição decorrente de tal situação, daí porque é juridicamente aceitável que se tenha como apenas exemplificativo o supra citado rol de ilícitos (LC 64/90).
Registro que, se assim não for, ter-se-á de reconhecer como elegíveis os que tenham cometido, por exemplo, homicídios em série (serial killers), lenocínio, crimes contra o patrimônio privado (assalto, roubo, estelionato, etc.), seqüestro, tráfico de drogas e de armas, racismo, atentados contra o Estado Democrático de Direito e/ou outros, pela simples razão de não constarem naquela lista.
No caso presente, cumpre observar que o recorrente está condenado pelo crime de resistência, embora a sentença não tenha trânsito em julgado, bem como processado por outros delitos de gravidade manifesta, como crimes contra a ordem tributária e de apropriação indébita previdenciária, sem falar em lesão corporal, processos esses que referencio apenas para melhor deixar delineado o perfil do recorrente.
Com efeito, sopesando os princípios cogitados, da presunção de inocência e da proteção da probidade e da moralidade administrativa, e valendo-me da atribuição que o art. 23 da LC 64/90 outorga à jurisdição eleitoral, tenho que a existência de uma condenação pelo crime de falsificação de documento público é indício bastante e presunção satisfatória para desabonar completamente a reputação do recorrente para o fim aqui colimado, que o aponta como desrecomendável à assunção de cargo eletivo, tendo em vista que, atentando para essas circunstâncias e no interesse público de lisura do pleito, a sua não participação no certame é medida que se impõe.
Reitero que esse juízo não compromete a percepção ou avaliação que no futuro venha a ter a respeito das imputações delitivas feitas ao recorrente, as quais serão apreciadas na instância própria e no momento oportuno. O de que se trata, por agora, é tão-só e apenas de preservar o pleito eleitoral, impedindo-se, jurisdicionalmente, a participação de quem, como o recorrente, não ostenta as condições reclamadas pelos valores da moralidade e da probidade administrativas.
Com a devida vênia, nego provimento ao recurso, acompanhando o voto divergente, do eminente Ministro Carlos Ayres de Britto, ainda que por fundamentação diferente.
É como voto, eminentes Pares." 19/09/2006 - Voto do ministro José Delgado - 3 a 3
Em seguida, o ministro José Delgado, ao ressaltar que a matéria "ganha contornos de repercussão profunda", acompanhou o entendimento do ministro César Asfor Rocha e do ministro Carlos Ayres Britto. Segundo o ministro José Delgado, "o juiz há de evoluir diante das realidades que lhe são postas".
"Não posso deixar de considerar as transformações por que tem passado a sociedade, especialmente no cumprimento do princípio da moralidade", destacou o ministro durante o voto. Ele acrescentou que não é possível conceber o ordenamento jurídico que admite a possibilidade de que um cidadão que tenha várias ações penais contra si, resultantes de denúncias do Ministério Público, possa se candidatar.
O ministro salientou que o próprio Eurico Miranda, se considerasse não haver justa causa para o curso das ações penais que tem contra si, poderia ter se defendido com habeas corpus, pedindo a suspensão das denúncias.
Logo após o voto do ministro José Delgado, o ministro Gerardo Grossi pediu vista dos autos.
20/09/2006 - Voto-vista do ministro Gerardo Grossi - Eurico 4 a 3
Ao proferir seu voto-vista, o ministro Gerardo Grossi apoiou-se na Lei Complementar 64/90 (Lei das Inegibilidades). "Tenho de me ater à lei complementar", ressaltou o ministro. "De todo o debate que se fez nesta Casa - amplo, erudito, enriquecedor - um dado, de fato, ficou certo: o recorrente não sofreu condenação criminal transitada em julgado. É o que me basta para tê-lo inelegível", declarou. O ministro explicou que, como a lei está em vigor, só poderia deixar de aplicá-la se fosse declarada inconstitucional.
O artigo 1º, letra 'e', da Lei 64/90 dispõe que são inelegíveis os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado (esgotadas as possibilidades de recurso), pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de três anos, após o cumprimento da pena.
Eurico Miranda responde a nove processos na Justiça, sendo oito penais e uma por improbidade administrativa. Dentre os crimes aos quais responde, estão: falsificação de documentos públicos, crimes contra o sistema financeiro e tributário, ausência de contribuições previdenciárias, injúria e difamação, furto e lesão corporal.
Em nenhum dos casos, há sentença condenatória transitada em julgado. No entanto, o TRE-RJ negou, por unanimidade, o pedido de registro de Eurico Miranda "em decorrência da vida pregressa do pré-candidato", alegando que ele não teria "postura moral" para exercer o cargo pretendido.
Como o recurso foi negado por três ministros dos sete ministros do TSE - Carlos Ayres Britto (que abriu a divergência), César Asfor Rocha e José Delgado - e, conseqüentemente, imposta a pena de inelegibilidade a Eurico Miranda, o ministro Gerardo Grossi levantou a seguinte questão: por quanto tempo ele ficaria inelegível?
A Lei Complementar 64/90 fixa o prazo de três anos após o cumprimento da pena. Porém, o ministro perguntou-se qual seria prazo ao se declarar inelegível, para "se atender a sugestões constitucionais de moralidade, probidade e quejandos", um cidadão que responda a processos criminais. "Sofreria ele pena perpétua? Ficaria ao alvitre do juiz dizer se esse mau cidadão, um dia, se fez um bom cidadão?"
Na época da ditadura, lembrou o ministro Gerardo Grossi, bastava que uma pessoa respondesse a processo judicial, instaurado por denúncia do Ministério Público pela prática de determinados crimes, para que fosse declarada inelegível. Tal dispositivo legal (artigo 1º, inciso I, alínea "n" da Lei Complementar 5/70) foi declarado inconstitucional pelo TSE, por voto de desempate, em 23 de setembro de 1976. Pouco depois, o Supremo Tribunal Federal modificou, por escassa maioria, a decisão do TSE.
A Lei Complementar 5/70 vigorou por seis anos e meio. Nesse período, se o TSE tivesse de examinar um pedido de registro de candidatura de Juscelino Kubitschek ao cargo de vereador de Diamantina, supôs o ministro Gerardo Grossi, teria de indeferi-lo, mesmo que JK não estivesse, como estava, com seus direitos políticos suspensos por dez anos, pois contra ele tramitavam 12 IPMs (Inquéritos Policiais Militares).
"Dada essa notícia histórica, historicamente pertinente, creio que não podemos reeditar aquele dispositivo da Lei Complementar nº 5 que esta Corte e o STF, afinal, tiveram por inconstitucional", disse o ministro. "Não somos legisladores e, muito menos, legisladores constituintes", completou, reforçando que a inelegibilidade é direito constitucionalmente protegido.
A Lei Complementar 5/70 foi revogada pela Lei Complementar 64/90.
Processos contra Eurico
O site situacionista Casaca divulgou um levantamento dos processos a que Eurico Miranda responde nas diversas instâncias da Justiça. Confira:
PROCESSOS
São 6 processos e 1 inquérito criminal.
- Os 4 processos na Vara Federal:
1) Crime contra o Sistema Financeiro Nacional. Histórico: processo contra o Vasco, caso da transferência de Bebeto para o La Coruña. Parecer favorável ao Vasco. Observação: Eurico não era o Presidente do clube nesta ocasião.
2) Crime de Resistência. Ocorrido quando o Presidente Eurico Miranda defendeu o Vasco no dia da invasão da Polícia Federal a São Januário.
3 e 4) Apropriação indébita de INSS. Histórico: processo contra o Vasco. Observação: Eurico não era Presidente do clube na ocasião. Possível não pagamento do INSS recolhido de atletas. Situação: vitória do Vasco e de Eurico em primeira e segunda instâncias do TRF 2ª Região.
- Os 2 processos na Vara Estadual:
1) Caso com Francisco Horta. Arquivado!
2) Caso do jornalista Carlos Monteiro. Histórico: Absolvido em 1ª instância e reformado em 2ª instância. Atualmente em fase de recurso.
- O inquérito estadual:
1) Furto. Histórico: processo em fase de inquérito. Referente a uma denúncia feita por um dirigente do Botafogo. Em recente jogo entre as duas equipes, cujo mandante era o Botafogo, Eurico esteve na Federação para buscar a cota de ingressos que cabia ao Vasco. O tal dirigente do Botafogo foi à delegacia alegando que os ingressos haviam sido retirados à força. Funcionários da Federação desmentem tal versão.
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ESCLARECENDO MAIS UMA VEZ:
1) Evasão de divisas. Não há denúncia.
2) Improbidade administrativa. Não há denúncia.
3) Falsidade ideológica. Não há denúncia.
Fonte: NETVASCO (texto), Site do TSE (votos dos ministros), Casaca (informações sobre os processos contra Eurico) |