Conheça Matías Galarza, meia paraguaio do Vasco
Quarta-feira, 14/04/2021 - 22:42
A movimentação em campo, capaz de fazê-lo migrar da defesa ao ataque e vice-versa durante os 90 minutos, é o traço do jogador que talvez melhor resuma a personalidade do homem Matías Galarza. Por jamais se furtar a aparecer no jogo, o paraguaio de 19 anos é intenso. E, por ser intenso, também é inquieto.

Não à toa ele sempre correu atrás do sonho de ser jogador. Se tinha a facilidade de seguir o exemplo do pai, do avô e até de um tio-avô que jogou a Copa de 1958, integrantes de uma longa dinastia de goleiros com sobrenome Galarza, Matías decidiu enfrentar o desafio de atuar no meio-campo. Se tinha de acordar às 4h30min e enfrentar 40km de ônibus até os primeiros treinos na base do Olimpia, dava jeito de aliar ao almoço algumas horas de sono para não descuidar dos estudos.

Foi assim que encarou a chance de defender o Vasco no ano passado. No Paraguai, o futebol estava parado fazia dois meses por conta da pandemia do novo coronavírus. A proposta chegou e, apesar do medo do descontrole da doença em outro país, arrumou as malas. No desembarque no Rio, outra surpresa: levou três meses para ter condições legais de atuar.

- Se tornar jogador de futebol não é fácil. Aos 12 anos, eu abri mão de muita coisa. Nem sempre tudo esteve bem. É claro que passei por momentos difíceis, mas nunca me dei por vencido. Sempre tive o sonho de defender um time grande, e o Vasco é um time grande - resume Galarza.

Abaixo, o ge conta a origem e as histórias de Galarza, um misto de surpresa e planejamento para ser titular de Marcelo Cabo. Uma cria de vestiários paraguaios e bolivianos, um "showman" quando criança, um cara que se espelha em Modric, uma peça fundamental em conquistas do sub-20 e um jovem esperançoso em ser campeão pelo profissional do Vasco.

CRIA DE VESTIÁRIO

Ele nasceu com o futebol, no vestiário se criou e nunca mais se separou. Matías é descendente de uma família tradicional no esporte paraguaio e boliviano: a "dinastia Galarza", composta quase exclusivamente por goleiros de três gerações distintas. Para quem não os conhece, é fácil se perder na extensa árvore genealógica.

Rolando, pai de Matías, fez carreira no futebol da Bolívia, país onde nasceu. A profissão dele e suas alegrias e frustrações fizeram parte da criação do filho.

- Matías e seu irmão praticamente se criaram no vestiário. Eu os levava comigo para as partidas e treinamentos. Desde pequeno, viviam minhas vitórias e derrotas. Depois que me aposentei, continuei como treinador de goleiros e eles seguiram da mesma forma - recorda Rolando Galarza.

Em 2013, com 11 anos, Matías esteve no Brasil para a final da Libertadores entre Atlético-MG e Olimpia. Foi uma "experiência muito especial", nas palavras dele, apesar da perda do título do pai, treinador de goleiros do time paraguaio - o titular da equipe era Martín Silva -, função que voltou a desempenhar após um período no San Lorenzo, também do Paraguai.

Um tio-avô de Matías, Ramon Mayeregger, disputou o Mundial da Suécia, em 1958, pela seleção paraguaia, e fez história no Emelec, do Equador. Os irmãos de Ramon, Luis Esteban e Arturo (avô de Matías), são paraguaios naturalizados bolivianos, que defenderam o gol da seleção da Bolívia e alguns dos principais clubes do país. Além de mais dois tios e parentes de menor grau, Matías tem ainda o irmão mais velho, Lucas, de 20 anos, que atua no Jorge Wilstermann, da Bolívia. Todos são goleiros, menos o jovem meia vascaíno.

- Quando era pequeno, meu pai escondia as luvas em casa, pois todos nós sabemos o sofrimento que é ser goleiro. É a posição mais difícil do futebol. Você joga uma partida mal, e as pessoas duvidam do seu potencial. Além disso, ser reserva é muito difícil. Podem ser anos e anos no banco - afirma Matías, com estatura baixa (1,75m) na opinião do pai para ser goleiro.

Além da família paterna de goleiros, Matías é filho de Romina Fonda, atleta de tênis. Também desde pequeno pratica o esporte da mãe, embora nunca tenha pensado em torná-lo profissão.

SHOWMAN Y PELEADOR

A desenvoltura que Matías demonstra em campo sempre foi vista fora das quatro linhas. Enquanto criança, gostava de dançar e fazer graça, virando foco de atenção dos adultos. Na definição do pai, um "showman" desde os três ou quatro anos.

Como é usual, os jogadores colocavam música para tocar no pré-jogo. Matías, levado pelo pai ao vestiário, começava a "bailar". Oposto do irmão, mais alto e "duro", Matías também gostava de arriscar os passos após marcar gol na base do Olimpia.

- Eu sempre gostava de dar alegria e aliviar o ambiente. Eu fazia isso (dancinhas após gols) porque sempre dedicava os gols ao meu pai. Eram uns passinhos... Vamos ver se em breve eu posso repetir - comenta Matías.

Outro traço de personalidade que o acompanha desde a infância, dividida entre Bolívia e Paraguai, a depender do emprego do pai, é a alta competitividade. Seu maior castigo era que lhe tirassem a bola, e as disputas com o irmão dentro de casa sempre foram levadas a sério. Era comum que Matías chorasse quando perdia e tinha de aceitar as brincadeiras de Lucas, que chegou a levar uma cadeirada em episódio mais extremo.

Aos 12 anos, o "niño" Matías ingressou de modo precoce na categoria sub-14 do Olimpia - a mais baixa existente no Paraguai. O caminho de casa para os treinamentos era longo, com cerca de 40km entre Luque, onde morava a família, e Villeta, onde fica o CT da base. Ao contrário do Brasil, a maior parte das atividades realizadas no Paraguai ocorre no início do dia, por volta das 6h. Na volta para casa, Matías aproveitava o tempo para um cochilo antes de ir ao colégio e tinha de ser acordado pela mãe. Romina Fonda foi quem sempre reforçou ao filho a necessidade de seguir dedicado aos estudos.

O destaque entre os garotos do Olimpia rendeu a Matías convocações para a seleção paraguaia. Por ter pai boliviano, ele também pode atuar pelo país vizinho, onde alguns de seus antepassados fizeram história. Mas foi justamente com a camisa branca, vermelha e azul - com a qual mais se identifica e pretende defender - que Matías conquistou o primeiro olhar atento que quebrou fronteiras. O olhar de São Januário.

NA COLINA

A primeira vez em que o Vasco se enamorou por Matías foi à distância e em silêncio, ainda em março de 2019, quando o meia disputou três dos nove jogos do Paraguai no Sul-Americano sub-17, no Chile, com 179 minutos em ação. Alessandro Falbo, no Rio de Janeiro, coordenador do Centro de Captação, foi o responsável por observar o torneio e fez as primeiras anotações positivas sobre o jovem, a quem considerou um jogador intenso, que não parava em campo.

As considerações de Falbo ficaram guardadas por pouco mais de um ano até serem revisitadas em 2020, quando Matías foi oferecido a Carlos Brazil, gerente da base do Vasco. O processo interno do clube foi seguido, com a oportunidade sendo repassada ao Centro de Captação, que fez novas análises sobre o desempenho do atleta no Paraguai.

Depois, seguiu para o aval do departamento técnico, comandado por Eduardo Húngaro, e retornou para as mãos de Carlos Brazil. Em 18 de junho, o ge noticiou pela primeira vez que o clube estava próximo de acertar a contratação do meia, confirmada no dia seguinte e oficialmente registrada apenas em outubro, por uma demora na documentação no Brasil, que impediu Matías de estrear logo nos primeiros meses de Vasco. O acerto com o Olimpia se deu por empréstimo até janeiro de 2022, com opção de compra de cerca de US$ 700 mil.

- No Paraguai, o futebol parou por completo. O Brasil, ao lado da Argentina, tem o futebol mais competitivo da América do Sul. Mas, sim, foi uma decisão difícil por conta da pandemia. Era a primeira vez em que eu sairia do meu país sozinho, sem a minha família - explica Matías, que conta com o ex-atacante Maxi Biancucchi, primo de Messi, como empresário.

- A grande surpresa foi a rápida adaptação dele. A gente esperava uma adaptação um pouco mais tardia, era o que estava na nossa programação, mas foi o contrário. O Matías é muito determinado, tem um cognitivo muito alto e isso ajudou, principalmente em termos de cultura e o que facilita para ele se sentir bem e focar em jogar - diz Falbo.

A distância dos pais é amenizada em chamadas de vídeo quase diárias - e obrigatórias após cada jogo, para que o pai comente os pontos a melhorar. A tecnologia ajudou, em um primeiro instante, no contato com a comissão técnica do Vasco. Sem poder ingressar no Brasil por conta da pandemia, Matías recebia de forma online orientações táticas e físicos.

No Rio finalmente, Matías se mudou para o alojamento em São Januário. A vida no Brasil exigia a adaptação a uma nova cultura, e Matías remodelou, por exemplo, sua forma de se vestir. Antes mais formal, o meio-campista foi aos poucos se adaptando ao estilo despojado que obervava entre os cariocas. O idioma não foi adversário, pelo contrário: ajudou na integração ao passo em que alguns colegas incorporaram expressões do paraguaio como forma de brincadeira. Uma cuia que Matías carrega com constância - o mate é bebida popular no Paraguai - também virou alvo de curiosidade por parte da equipe. Ele ainda menciona o desafio de aprender a "suportar o calor do Rio".

ESPELHO EM MODRIC

Olhar as publicações de Matías nas redes sociais é se deparar com comentários animados. Entre elogios como "craque" e "joga de terno", surgem as comparações: "Modric da Colina", "El Paraguaio Modric", "Bueno, Modric". A semelhança na aparência com o croata do Real Madrid é inegável, uma brincadeira que vinha desde o Paraguai e foi adotada pelos vascaínos. A comparação não incomoda, afinal, Messi é seu jogador preferido e Modric justamente aquele que mais o inspira.

- Modric é o volante, na minha visão, mais completo: tem passe, visão de jogo, pegada, faz gol - define Matías, que abriu seu maior sorriso durante a entrevista ao ge enquanto ouvia a pergunta sobre a comparação com o croata.

O caminho para chegar próximo às conquistas do ídolo é bastante longo. Além das já mencionadas intensidade, competitividade e profissionalismo, os dois treinadores que o paraguaio teve na base do Vasco destacam sua maturidade e concordam em apontar o mesmo ponto de melhoria para o jovem: aprender a dosar sua vontade, sem perder a intensidade, mas para ter o cuidado de não "correr errado", como se diz no jargão do futebol.

- É um jogador que já nos foi apresentado como de seleção. Ele tem uma maturidade relacionada à capacidade de jogo, à inteligência com a bola. Logo na chegada já demonstrou essa capacidade em nível de treino, de adaptação e de interação à metodologia do clube. Isso acontece com jogadores que já apresentam certa maturidade - destaca Alexandre Grasseli.

- Ele está sempre se movimentando. Busca espaço, não espera a bola no pé. Vai bem nos duelos defensivos, joga firme. Uma coisa que sempre conversei com ele e acho que ele ainda está evoluindo: por ter essa intensidade, ele corre até mais do que deveria. Então, tem a questão do posicionamento. Falava que não precisava correr tanto, que tinha de ficar em determinados espaços - analisa Diogo Siston.

Alexandre Falbo ressalta ainda uma evolução que viu no meia desde que ele iniciou no Vasco. Antes o paraguaio chegava pouco dentro da área rival. Quando finalizava, era da intermediária. Agora ele já coloca bolas na rede com mais naturalidade e paticipa dos ataques com profundidade.

No time sub-20 do Vasco, Matías disputou 18 partidas oficiais entre 24 de outubro e 21 de fevereiro, e fez parte dos títulos da Copa do Brasil, sobre o Bahia, da Supercopa, sobre o Atlético-MG, e do Carioca, sobre o Botafogo. Marcou um gol, na decisão contra o time baiano - roubando bola em bobeada do zagueiro adversário dentro da área.

SONHOS NO VASCO E NA EUROPA

Há três semanas, Matías se tornou manchete pela primeira vez como jogador profissional. Em seu terceiro jogo na equipe principal, contra o Macaé, ele entrou já ao fim da partida e precisou somente de três minutos para acertar um lindo chute de fora da área. Usou da canhota, sua melhor perna, para disparar a bola com força e efeito, um cartão de visitas perfeito.

Veio, então, uma sequência "enlouquecida", típica de menino que acabara de deixar sua primeira marca entre os adultos. Correu para um lado, braços abertos e olhos arregalados. Foi puxado por companheiros, mas livrou-se deles para procurar a câmera do lado oposto. Mostrou, enfim, uma de suas comemorações características: sinal de "hang loose" com as duas mãos e joelhos erguidos em marcha, uma brincadeira que fazia com o irmão - agora prontamente acompanhado pelo restante do time. Outra celebração usual é representando o jogo de "pedra, papel e tesoura" com as mãos, este dedicado à irmã de sua namorada.

No Twitter, ele compartilhou o vídeo do gol e brincou com o comentarista que havia dito, poucos segundos antes, com razão, que Matías havia se atrapalhado com a bola no lance anterior. Matías também usa as redes para compartilhar elogios e destaques de suas atuações, além de receber comentários frequentes de colegas de base, como Gabriel Pec, Caio Lopes, Andrey e João Pedro - que costumam interagir uns com os outros. Entre os adultos, quem cumpriu o papel de acolher o paraguaio foi o argentino Cano, 33 anos, referência técnica e artilheiro do time.

- Estamos sempre juntos, ele me ajuda com o idioma. É o mais próximo de mim, mas o grupo profissional também me recebeu muito bem. É ele (Cano) quem me aconselha, o que tenho de fazer, o que tem de ser evitado - comenta Matías, que era aguardado por Cano durante a entrevista, para que voltassem juntos para casa num sábado pela manhã.

O gol contra o Macaé e as boas impressões das duas partidas anteriores renderam a Matías a titularidade da equipe de Marcelo Cabo nos quatro jogos seguintes. Marcou mais um gol, em finalização de dentro da área. Agora, nesta quinta-feira, terá a chance de disputar seu primeiro Clássico dos Milhões contra o arquirrival Flamengo na estreia no Maracanã, estádio que sempre ouviu ser mencionado como "especial".

O primeiro desejo do paraguaio é ser campeão com a camisa cruz-maltina. Depois, como todo garoto promissor, seu maior objetivo a longo prazo é estar em destaque na Europa, especialmente na Inglaterra e na Espanha. Grasseli, que deixou o Vasco no início do ano, usa a metáfora de uma ponte entre a base e o profissional para explicar que esta é uma travessia longa e repleta de altos e baixos.

- O profissional é diferente. Tem mais cobrança, tem a torcida, a imprensa, a rede social, tudo que pode derrubar e levantar. O Vasco está preparado para dar esse apoio, mas o jogador tem de ter essa consciência. No caso dele, a educação e a formação familiar vão ajudar. Mas é preciso paciência. Ele tem uma perspectiva muito grande e uma forma de jogar inteligente e moderna - afirma.

Pode-se dizer que Matías Galarza começou bem a caminhada para atravessar sua própria ponte. Carrega em si um misto de ousadia, conhecimento do percurso e boas bússolas, como um navegador experiente que rompe o Atlântico em busca de terras firmes. No Vasco da Gama, como mencionam os paraguaios, assim, por completo, Matías pode iniciar sua trajetória rumo aos sonhos no Brasil e no além-mar.

- Tiveram situações (durante a carreira) em que fiquei no banco e desanimei. Gera dúvida, sabe? Mas nunca me dei por vencido. Sempre treinei e ouvi que tinha de estar preparado. Meu pai sempre dizia isso. Aqui foi parecido. Estava treinando, queria jogar e o Cano sempre me acalmava. Dizia que era para ficar preparado, que a oportunidade apareceria. E foi assim - comenta Matías, com a simplicidade do menino que bailava por vestiários.





Fonte: ge