VP de história e responsabilidade social Horacio Junior: 'O vascaíno tomou as dores do Barbosa'
Sábado, 27/03/2021 - 10:47
Quando era estagiário no jornal "O Estado de S. Paulo", em 2000, fui encarregado de parte do material de 50 anos da Copa do Mundo de 1950. O editor me pediu que entrevistasse o zagueiro Juvenal porque este era apontado como um dos culpados no fatal gol de Ghiggia que deu o título ao Uruguai. Achei Juvenal por telefone e ele atendeu ranzinza: reclamou que, depois que morreu o goleiro Barbosa, ligavam sempre para ele para repercutir as "falhas" naquela final. Era ele e Bigode, os dois zagueiros.

De fato, o goleiro Barbosa respondeu a vida inteira como tinha "falhado" naquele chute. Só que para os vascaínos, aqueles que o conheciam melhor, era um ídolo, provavelmente o maior goleiro da história do clube, figura marcante no time histórico do clube, o Expresso da Vitória, das décadas de 40 e 50.

Não por acaso, neste sábado em que o ex-jogador faz 100 anos, o Vasco lhe faz uma justa homenagem nas arquibancadas. Está lá escrito o nome de Barbosa com o número 100, entre outras ações. O CT do clube já tem o nome do goleiro.

"Sem nenhum estímulo comercial externo sugerido pelo clube, o vascaíno tomou as dores do Barbosa", analisou o vice de Responsabilidade Social e História do Vasco, Horácio Junior. "A torcida vascaína de forma espontânea disse que esse cara não pode carregar essa cruz sozinho. O vascaíno muito mais ciente de suas conquistas resolveu abraçar o Barbosa. Nenhum jogador da época tem esse carinho. Eu apostaria mais nessa indignação (do que na questão de luta antirracista). O que fizeram com ele foi uma sacanagem. É um sentimento de defesa, de acolhimento"

Horácio Junior lembra que, quando o Brasil levou de 7 a 1 da Alemanha, não houve apenas um culpado pelo fiasco. É fato que Felipão levou uma carga negativa, que Thiago Silva foi achincalhado por se emocionar, mas todos seguiram suas vidas, voltaram a jogar.

Barbosa continuou no Vasco e fechou sua carreira com seis Estaduais e o título Sul-Americano de 1948. Lembremos que os campeonatos locais eram os mais relevantes naquela época. Mas seguiu respondendo só sobre seu suposto erro. Ao se analisar as imagens possíveis daquele lance, nem sequer dá para ter certeza que houve uma falha, em um chute rápido que quica.

Para Horácio Junior, a "sentença" contra Barbosa é uma construção coletiva que tem a ver com a mídia, embora não seja exclusiva dela. Lembra como o escritor Nelson Rodrigues falava em seu "frango" - Nelson, diga-se, que admitia assistir mal aos jogos. "A mídia cria uma memória coletiva. Não dá para cravar que a mídia culpou o Barbosa. Mas o que acontece: pessoas como Armando Nogueira falam 'absolvo mais ainda o Barbosa quando vejo o lance'. Uma coisa esquisita: ele é um juiz para fazer esse tipo de julgamento?", questionou o dirigente vascaíno.

A ponto de o goleiro ter sido barrado de um treino da seleção na década de 90 porque o então técnico Carlos Alberto Parreira não queria que ele fosse visto ao lado de Taffarel.

Há a óbvia discussão se a perseguição a Barbosa era fruto do racismo estrutural no Brasil e no futebol. Não esqueçamos que goleiros negros passaram a sofrer certo preconceito no futebol como qualquer um que acompanha futebol antigamente pode constatar. Um goleiro como Dida ajudou a espantar isso, o vascaíno Hélton também.

"Hélton sofreu (esse preconceito), o Lucão sofreu. Tem que ser (negro) para sentir, então, não posso falar. Ser branco é um privilégio. São experiências diferentes. Acredito que boa parte disso daí foi um racismo estrutural, embora nunca ninguém tenha falado", lembrou Horário Junior.

O Vasco tem os seus laços históricos na defesa contra o racismo pela sua recusa em disputar o Carioca sem negros na década de 20. Mas o acolhimento a Barbosa, que vem talvez nos últimos dez anos, tem mais a ver com uma reação à perseguição. E um movimento de fora para dentro, da torcida para dentro do clube.

Os vascaínos não absolveram Barbosa porque ele nunca foi culpado, mas lhe deram um carinho que lhe foi negado em vida. Talvez seja uma lição para a forma como vemos o futebol.



Fonte: Coluna Rodrigo Mattos - UOL