Barbosa morreu orgulhoso de seu currículo, afirma Tereza Borba
Sábado, 27/03/2021 - 08:48
Quando o Museu do Futebol foi inaugurado, em 2008, em São Paulo, Tereza Borba foi procurada com um pedido de autorização para usar a imagem de Barbosa. Enfermeira, ela cuidou do goleiro de 1993 até sua morte, em 2000. Os dois estabeleceram relação de pai e filha. Ao notar que a única menção ao jogador era a fatídica derrota da seleção na final da Copa de 1950, sofreu um baque:

— Chorei. Chorei muito — conta a enfermeira.

Treze anos depois, Tereza e o Museu do Futebol voltaram a conversar. Desta vez, para uma exposição sobre Barbosa. Os títulos e toda sua trajetória serão contados. A diferença na abordagem neste intervalo de tempo não é exclusiva da instituição. O goleiro, que completaria 100 anos hoje, vem passando por um processo de ressignificação nos últimos anos.

Além da exposição, ele receberá uma série de homenagens do Vasco, do qual é um dos maiores ídolos. O clube instalou um mosaico com "Barbosa 100" nas cadeiras sociais de São Januário e fará ações hoje na internet e no jogo contra o Madureira, às 15h30, pelo Campeonato Carioca. Ontem, lançou camisa comemorativa que abre uma linha de produtos. Parte dos royalties das vendas será destinada a Tereza, que cuida da preservação de sua memória.

— Tenho feito isso há mais de 20 anos. Ele estava esquecido por todos. Esse movimento começou a reverberar, está crescendo. É uma sementinha que agora está sendo colhida. Ele está sendo lembrado como o Barbosa campeão — afirma Tereza. — Não é justo falar só da Copa de 1950. Ele não caiu na seleção de paraquedas. Era o melhor goleiro da época.

Barbosa é o jogador com mais títulos pelo Vasco: 15. Entre eles, o Sul-Americano de clubes de 1948 (precursor da Libertadores) e seis Cariocas (1945, 1947, 1949, 1950, 1952 e 1958). Pela seleção, foi campeão sul-americano em 1949, além de vice mundial no ano seguinte — até então, a melhor campanha do Brasil numa Copa. Apesar do currículo, por décadas foi sinônimo de derrota. Uma espécie de vilão do futebol brasileiro.

— O Barbosa é um ídolo histórico do Vasco — afirma Walmer Peres, coordenador do centro de memória do clube. — É um fenômeno entre os torcedores, independentemente da geração. Mesmo quem não o viu jogar, ao ficar sabendo da carreira dele, se apaixona pela sua trajetória vitoriosa e vê o quanto foi injustiçado ao ser tachado de vilão fora do clube.

Para quem estuda o esporte e a biografia de Barbosa, a explicação para a pecha imposta a ele é clara: o goleiro foi alvo do racismo existente na sociedade e que encontra no futebol campo fértil para sua reprodução. A invasão de políticos à concentração na véspera da final e a incapacidade de blindar o elenco da pressão e do clima de já ganhou externos nunca foram tão responsabilizados pela derrota quanto o goleiro.

— Acho que a maior parte da sociedade ainda vê o Barbosa como culpado. O que venho acompanhando hoje é o crescimento de um grupo de pessoas, principalmente as ligadas ao movimento negro, tentado mostrar que ele não pode ser resumido ao goleiro que supostamente falhou na Copa. Esta é uma tentativa de se repensar sua história e valorizar outros aspectos que não sejam aqueles minutos que vemos na TV, com ele levando os gols do Uruguai — diz Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.

Importante destacar que, ainda em 1950, já havia quem enxergasse o racismo na reação à perda do título mundial. Em setembro daquele ano, Álvaro do Nascimento, mais conhecido pelo pseudônimo Zé de São Januário, combateu, em artigo no "Jornal dos Sports", a tese de inferioridade da raça usada por outro jornalista para explicar o revés da seleção. Embora eleito o principal culpado pela derrota, Barbosa não foi o único alvo da crítica da época. Os igualmente negros Bigode e Juvenal também foram responsabilizados pela derrota. Esta descoberta está no livro "O rio corre para o Maracanã", de Gisella Moura.

Já em 1964, o jornalista Mario Filho aprofundaria esta problematização na nova edição de "O negro no futebol brasileiro". A partir daí, a discussão sobre o racismo por trás da crucificação de Barbosa começa a ganhar força.

— Depois de 1964, esta tese passa ser perpetuada pelas análises sociais do futebol brasileiro feitas por historiadores e sociólogos, que acabam por consolidar a ideia do Mario Filho sem questioná-la — explica Bruno Otávio de Lacerda Abrahão, professor do curso de Educação Física da Universidade Federal da Bahia e autor da tese "O que o brasileiro não esquece nem a tiro é o chamado frango de Barbosa: questões sobre o racismo no futebol brasileiro":

— Com o tempo, as pessoas passaram a rever essa condição do Barbosa. Acho que as reportagens mais recentes feitas sobre ele e o próprio movimento da torcida do Vasco de defendê-lo são no sentido de trazer essa absolvição como culpado pela derrota na Copa de 1950.

Estigma do goleiro negro

O maior indício da influência do racismo está no fato de que, a partir da derrota de 1950, ganhou força no Brasil o estigma do goleiro negro. Entre muitos torcedores e dirigentes, passou a vigorar a ideia de que pretos não são capazes de corresponder à confiança exigida para a função.

Na seleção, isso é ainda mais evidente. À exceção de Manga, que jogou uma partida em 1966, o Brasil levou 56 anos para voltar a ter um preto titular numa Copa: Dida, em 2006. Mas nada se compara à pressão sobre Jefferson. Mesmo na reserva em 2014, foi bombardeado por perguntas sobre ser um goleiro negro no Mundial do Brasil, palco da origem do estigma.

— Tive que lidar com vários tipos de pressão. Essa foi desnecessária. Praticamente em todas as coletivas que eu ia, as perguntas eram sobre isso. Sobre usar a camisa dele, se eu o homenagearia caso jogasse. Queriam que eu, de alguma maneira, tentasse apagar o que houve com o Barbosa — lembra Jefferson.

— Foi difícil. Não estava esperando ser reconhecido desta forma. Mas mantive a cabeça no lugar e pensei: ‘Se tiver a oportunidade de jogar, não vou trazer este peso de querer provar que um negro pode agarrar na Copa'.

Este também não foi um peso para Barbosa. Após a Copa, ele seguiu com carreira vitoriosa e, segundo conta sua filha, morreu orgulhoso de seu currículo.

— Ele foi uma pessoa que, na realidade, abriu muitas portas para os negros — conclui Jefferson. — Hoje, todos os goleiros negros representam um pouco o Barbosa.



Fonte: O Globo Online