Ambulantes dos estádios do Rio vêm sobrevivendo com doações de torcedores
Terça-feira, 05/05/2020 - 23:59
O isolamento social por conta do novo coronavírus gerou um sentimento de saudade generalizada do futebol. O torcedor não vê a hora da bola voltar a rolar. Mas há quem tenha motivos mais urgentes para torcer pelo controle da pandemia e a volta dos estádios lotados. Sem a atividade que garante seu sustento, ambulantes do Maracanã, Nilton Santos e São Januário enfrentam dificuldades financeiras no período de quarentena e dependem da solidariedade de torcedores.

É o caso de Bárbara Barbosa Ribeiro. A renda da família vem do programa Bolsa Família, do trabalho de Bárbara como ambulante, sem carteira assinada, nos estádios do Maracanã, Nilton Santos e São Januário e da venda de balas em ônibus. Mãe solo de duas crianças, ela usou os R$ 1.200 do auxílio emergencial para pagar os aluguéis atrasados, cada um no valor de R$600.

- A mulher (dona do imóvel) queria me botar para fora com as minhas crianças. Consegui pagar. Mas para as compras, (o auxílio) não vai dar esse mês. Não sei como vou fazer. Tenho dois quilos de arroz e um de feijão para durar até o mês que vem. Isso porque peguei na cesta dos torcedores do Vasco, senão nem isso tinha - desabafa.

Moradora do Morro do Urubu, em Pilares, ela até cogitou ir para a rua tentar complementar a renda, mas não pode sair de casa por conta de dois fatores: as escolas fechadas e a condição de grupo de risco dos filhos. Mariana e Guilherme, de sete e nove anos respectivamente, têm bronquite. Além disso, a caçula também é portadora de artrite idiopática juvenil, doença inflamatória crônica que acomete as articulações - no último mês, por conta da crise, a menina ficou sem a dose do remédio para tratamento.

"Senão eu ia catar latinha, vender água. Não tenho vergonha, não"

A situação é ainda mais complicada para funcionários do Maracanã com contrato intermitente. O modelo, criado na reforma trabalhista de 2017, permite que o trabalhador não tenha jornada fixa e receba pelas horas trabalhadas. Durante a pandemia, a MP 936 permitiu a suspensão desses contratos de trabalho, recebendo o Benefício Emergencial (BEm).

O valor de R$ 600 do benefício não pode ser dobrado para mães ou pais solo, e foi um dos últimos a ter previsão de pagamento. A primeira parcela foi paga somente na última segunda-feira (04/05).

Monique da Costa de Souza é uma das que aguardam o pagamento do benefício. Sem trabalhar desde 14 de março, ela vem contando com doações para se manter e garantir a alimentação de seus oito filhos.

- Estou vivendo na medida do possível. Deus está me dando forças para seguir. Se meus filhos têm arroz e feijão para comer, eu agradeço à torcida. Os patrões mesmo não querem nem saber se temos de onde tirar o que comer.

Muitas vezes despercebidos ao passarem entre as fileiras nas arquibancadas, os trabalhadores se sentem ainda mais invisíveis no momento de dificuldade. Sem seu ganha-pão, eles contam com a solidariedade para enfrentar a crise.

Alguns grupos de torcedores, incluindo a torcedora símbolo do Vasco Adriana Lisboa e o youtuber rubro-negro Guilherme Pinheiro, fizeram doações de cestas básicas para trabalhadores dos estádios.

Há também um financiamento coletivo para levantar fundos para essas famílias. Idealizador da "vaquinha" (clique aqui para ajudar), o jornalista Sergio Solon Santos foi procurado por Bárbara e, inicialmente, tentou pedir ajuda a amigos, mas percebeu que não conseguiriam dar conta sozinhos.

- Muita gente não está conseguindo alimentar a própria família. É preciso uma política de Estado. Tentei recorrer a algumas autoridades, mas não obtive uma resposta satisfatória. Cansado de esperar o poder público tomar uma providência, fiz a vaquinha.

"Sem ambulantes não tem espetáculo tranquilo, não tem conforto durante o evento. Eles fazem parte do show. E quando tudo para, só eles não recebem atenção?"

A crise econômica sob as perspectivas de classe, gênero e raça

Em um momento onde a orientação mais segura é ficar em casa, quem mais sofre com o impacto econômico são as camadas mais pobres. É o que aponta o estudo "Efeitos econômicos negativos da crise do coronavírus tendem a afetar mais a renda dos mais pobres", feito por economistas do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar-UFMG).

De acordo com a publicação, o efeito negativo da crise será 20% maior para as famílias com renda de zero a dois salários mínimos.

Uma das autoras do texto, a professora de Economia da UFMG Débora Freire aponta que o fato de a distribuição de renda no Brasil ser heterogênea faz com que os impactos nas diferentes camadas sociais também ocorram de maneira desigual. Além disso, Freire explica que a maior parte das pessoas de menor renda estão empregadas em setores mais afetados, como os de serviços.

- Pelos próprios efeitos do mercado de trabalho, as famílias com menor renda tendem a ser mais impactadas por terem menor diversificação dos rendimentos, dependem fundamentalmente da renda do trabalho, enquanto as de classe mais alta têm renda de poupança, investimentos, lucros e dividendos- analisa Freire.

As histórias de Bárbara e Monique exemplificam outros dados além dos relativos à renda. O relatório "Mulheres no centro da luta contra a crise Covid-19", publicado pela ONU Mulheres, afirma que a população feminina está mais exposta às vulnerabilidades sociais causadas pela pandemia. A publicação destaca que as mulheres são maioria em setores de empregos informais e já desempenhavam três vezes mais trabalhos não remunerados do que os homens, número que deve triplicar com o isolamento.

Além da questão de gênero, a pesquisadora pós doutoranda do CIDACS/Fiocruz Emanuelle Góes afirma que é necessário considerar os impactos da Covid-19 na vida dos negros. A pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE, aponta que mulheres negras recebem, em média, 44,4% do salário dos homens brancos - ou seja, menos da metade -, enquanto homens negros recebem o equivalente a 56,1% e mulheres brancas, 75,8%.

- As mulheres e as pessoas negras representam uma grande parte dos que estão em situação de pobreza. Isso acontece porque o racismo estrutura a sociedade brasileira, fazendo que a distribuição social tenha uma hierarquia de raça e gênero. A pandemia exige que façamos o isolamento social, distanciamento, tenhamos cuidados básicos de higiene, fiquemos em casa. Tudo que é difícil para as pessoas em situação de pobreza ou em contexto de vulnerabilidades possam fazer - explica.

Em meio a um contexto de dificuldade financeira, a professora acredita que a Renda Básica Emergencial deveria se estender para para 50 ou 60% da população mais pobre. Além disso, ela ressalta que a duração do benefício deveria ser de meses, "por uma questão moral e humanitária, mas também econômica".

- Como a retração da renda é maior para as classes sociais mais baixas, que consomem a maior parte da renda e são a maior parte da população, o impacto negativo no crescimento da economia tende a ser elevado. Garantindo renda para essa camada da população, você suaviza parte do impacto recessivo da crise.

"Deixar essa população sem renda é aprofundar a recessão".

- O custo fiscal da medida deve ser sustentado nesse momento, seja via maior endividamento, seja via emissão monetária. Evitar esse custo pode trazer impactos ainda mais prejudiciais sobre as contas públicas. O alívio no pagamento de contas como energia e água, desoneração de tributos e a ação para que os bancos liberem crédito mais barato às famílias também podem ajudar - encerra Góes.





Fonte: GloboEsporte.com