Tricampeão estadual pelo Vasco, Hernande relembra carreira, elogia Calçada e Eurico, mas culpa advogado do clube por sua prisão

Sexta-feira, 24/07/2015 - 13:39
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Um acidente em 1995 mudou o rumo da vida de Hernande, então jogador do Vasco. Depois de ignorar o pedido da avó, para ficar em casa, ele foi a uma festa com amigos, no Rio. No caminho, ele conta que foi fechado por outro automóvel, perdeu o controle do carro e acabou atropelando quatro pessoas na calçada. Não houve mortes, mas o acidente alterou totalmente a vida do jogador.

Tricampeão sul-americano e campeão mundial júnior em 1992, Hernande era uma promessa não somente do clube carioca, mas do futebol brasileiro. Chegou a jogar com outros atletas, que viriam a brilhar: Jardel, Amoroso, Vampeta e os goleiros Marcos e Dida.

Em alta, foi para a Europa em 1996, agradou em um teste e assinou um contrato com o Hannover, da Alemanha. Mas ao retornar para o Brasil, o seu mundo literalmente desabou.

Hernande conta que deixou o caso do atropelamento nas mãos de um advogado do Vasco, mas, sem citar o nome, diz que foi prejudicado por ele e acabou sendo detido justamente ao pisar novamente no aeroporto do Rio.

"Ele [advogado] não me avisava nada do que ocorria aqui no Rio. Faltei a três audiências, porque nem fiquei sabendo delas. Ficou à revelia e o juiz pensou que eu estava de sacanagem, pensou que eu não queria saber de nada com nada. Ele bateu o martelo para 5 anos de regime fechado. Quando retornei da Alemanha, cheguei no aeroporto e fui informado. Sorte que muitos policiais federais na época eram vascaínos e gostavam de mim. Me chamaram de lado e informaram com discrição de que seria preso", contou.

Do aeroporto, Hernande foi para Bangu 1, presídio de segurança máxima onde ficam os bandidos mais perigosos. Por ser conhecido, entrou para o time de Escadinha. Literalmente. O traficante tinha um time de futebol na prisão.

"Conheci outro lado da vida, aquilo é horrível. Se eu não tivesse cabeça, meu Deus do céu, eu saia de lá um baita marginal. É outra vida".
Hernande já se aposentou do futebol. Atualmente vive de bicos. Já foi servente de obra de um presídio e hoje trabalha em uma fazenda no interior do Rio Grande do Sul. Ganha cerca de um salário mínimo – nem ele sabe ao certo.

Hoje, com 41 anos, o ex-atacante não tem dúvida. Sua vida seria totalmente diferente caso tivesse ouvido a avó no fatídico dia do acidente. "A minha avó estava me visitando no Rio de Janeiro e eu falei que ia em um pagodinho. Ela pediu para chamar meus amigos e ficar em casa, na cobertura, na beira da piscina, fazendo o churrasquinho. Mas eu não escutei. Quem não escuta os mais velhos sempre acontece alguma coisinha."

UOL Esporte: Como está sua vida hoje?

Hernade: Estou trabalhando aqui em uma fazenda do doutor Vilson Abelardo, em Alegrete (RS). Ele está me dando uma força enquanto não arrumo emprego. Venho para a fazenda e cuido dos animais. Às vezes tem que trazer um animal de um sítio pra colocar em outro estábulo. Cuido da fazenda.

UOL Esporte: Como é sua rotina?

Hernade: Eu acho que eu ganho um salário mínimo ou até menos. Durmo aqui na fazenda e só retorno pra cidade nos finais de semana. Sou solteiro e minha mãe faleceu há 4 meses. Meu pai era separado da minha mãe e mora em outra cidade, em Uruguaiana, há uma hora e meia daqui. Tenho 4 filhos: 3 meninas (Pamela, Vitória e Tainá) e um menino, o Hernande, que começou nas categorias do Vasco da Gama, mas depois não quis mais. Agora está fazendo engenharia civil e se forma daqui a dois anos.

UOL Esporte: Antes do bico na fazenda você estava trabalhando na construção de um presídio, em Santa Catarina?

Hernade: Sim, eu estava trabalhando com construção civil, como servente de pedreiro. Trabalhei na construção deste presidio em Chapecó por 6 meses. Estava esperando o resultado de uma entrevista de emprego para trabalhar como auxiliar de produção. Demorou muito e surgiu esse emprego.

UOL Esporte: Você tem contato com seus ex-companheiros?

Hernade: De vez em quando me comunico com eles no 'zap zap' (WhatsAp). A gente se fala, conversa como eu estou, como estão as coisas.

UOL Esporte: Você lembra do dia do acidente?

Hernade: A minha avó estava me visitando no Rio de Janeiro e eu falei que ia em um pagodinho. Ela pediu para chamar meus amigos e ficar em casa, na cobertura, na beira da piscina, fazendo o churrasquinho. Mas eu não escutei. Quem não escuta os mais velhos sempre acontece alguma coisinha. Quando estava indo, um maluco me fechou no trânsito, perdi a direção, subi a calçada e atropelei quatro pessoas. Graças a Deus ninguém morreu e ficou todo mundo bem. Ajudei todo mundo. Não havia bebido, não tem nada a ver. Eu seria titular contra o Palmeiras no domingo e o acidente aconteceu numa quarta-feira.

UOL Esporte: E em 1996, você chegou a assinar um contrato com o Hannover, da Alemanha...

Hernade: Isso foi em 96. Fui para a Alemanha fazer uns testes e consegui passar. Assinei um contrato de quatro anos. Enquanto isso o advogado do Vasco, que nem vou dizer o nome do desgraçado, falava pra mim ficar tranquilo que estava resolvendo todos os problemas do acidente. Mas ele não fez nada disso. Fiz os testes na Alemanha e ele não me avisava nada do que ocorria aqui no Rio. Faltei a três audiências, porque nem fiquei sabendo delas. Ficou à revelia e o juiz pensou que eu estava de sacanagem, pensou que eu não queria saber nada com nada. Ele bateu o martelo para 5 anos de regime fechado. Quando retornei da Alemanha, cheguei no aeroporto e fui informado. Sorte que muitos policiais federais na época eram vascaínos e gostavam de mim. Me chamaram de lado e informaram com descrição. Saí preso. Recorri a outro advogado, mas não teve jeito. Fui preso e o Hannover rescindiu o contrato.

UOL Esporte: O Vasco menosprezou você?

Hernade: Não digo o Vasco, pois é uma entidade. O problema foi a pessoa ligada ao Vasco [advogado]. Se não fosse o Vasco, não teria o nome que eu tenho, não tinha viajado o que eu viajei nesse mundo. O presidente era o seu [Antônio Soares] Calçada e o vice, Eurico Miranda. O Vasco me deu toda a atenção. Eu pensei que estava tudo resolvido [acidente de 95], tudo certo. Foi aí que deu tudo errado, minha decadência. Se não fosse isso eu estava bem, tinha pego até seleção.

UOL Esporte: E como foram os dias após voltar da Alemanha?

Hernade: Foi estranho porque eu nunca ia imaginar que passaria por uma coisa desta. Eu sou da fronteira e saí daqui com 13 anos de idade sem conhecer nada no Rio. Fiz as peneiras no Vasco e passei, mesmo com a família toda longe. Fui conhecendo as pessoas, pensavam que eram meus amigos, mas não são merda nenhuma. Só tapinhas nas costas e na hora que precisava ninguém chegava perto. Fiquei em Bangu 1 por três anos e foi horrível. Conheci o outro lado da vida, é outra coisa. Ainda bem que o diretor me colocou em pavilhão separado.

UOL Esporte: Os jogadores na época do Vasco foram te visitar na prisão?

Hernade: Sim, foram lá e deram apoio. Gian, Yan, Valdir bigode, Alex e Romário. Foram lá e deram uma força. Se eu não tivesse cabeça, meu Deus do céu, eu saia de lá um baita marginal. É outra vida.

UOL Esporte: Ficou amigo do traficante Escadinha, falecido em 2004. Jogou no time dele e foi artilheiro no presidio?

Hernade: Estava no pavilhão de frente ao dele e a gente conversava. Ele ficava louco com o pessoal, sem entender o que eu fazia ali. Ele era Fluminense doente. Na época o Yan jogava lá e levou um fardamento (uniforme) para ele. O Escadinha ficou louco de alegria com uma camisa autografada. Ele fez o time na cadeia e eu joguei. Às vezes tinha rebelião e a gente tinha que se esconder. O bicho pegava. Lá dentro é outra coisa, outra vida, é diferente pra caramba. Eu lembro que eu fiz 30 gols, mas colocaram 42 [risos]. No ano passado, aqui em Alegrete, teve um torneio dos veteranos e eu fui artilheiro com 28 gols. Começou agora um torneio municipal e estreamos com vitória por 5 a 0. Fiz mais dois [risos].

UOL Esporte: Neste período preso o que você viu que foi mais impactante?

Hernade: O mais impactante que eu vi foi uma rebelião lá e a polícia invadiu e quem estivesse pela frente ia levar bala. Foi um horror. Eu vi isso na minha frente.

UOL Esporte: Em regime semiaberto, assinou contrato com o Botafogo. Por que não deu certo?

Hernade: Para treinar, eles me pegavam de manhã cedo depois. Eu só retornava à tarde, depois do treino, pra dormir na prisão. Nos dias de concentração e jogos, tinha que pedir autorização para o juiz para eu poder sair, para jogar e até para viajar. Eu fiquei assim por um ano nesta época no Botafogo. Fui treinado por Paulo Autuori e Abel Braga.

UOL Esporte: E por que encerrou a carreira aos 33 anos?

Hernade: Eu encerrei a carreira por desgosto. Muita trairagem, muita falsidade. O pessoal olha assim e pensa que o futebol é mil maravilhas, mas não é . É muita coisa errada, muita falsidade. Faltou pouco para eu entrar em depressão. Meu último clube foi na segunda divisão do Gaúchão, pelo Flamengo de Alegrete.

UOL Esporte: Qual o seu maior sonho?

Hernade: Se Deus quiser eu ainda vou realizar e poder treinar a garotada. Quero passar o que eu aprendi no futebol, ensinar os garotos desde pequeno. Esse é o meu sonho. Vamos ver se eu consigo realizar. Quem me apoiava bastante era a minha mãe, mas ela faleceu. Meu pai conversa comigo de vez em quando, mas ele fica mais na outra família dele.




Fonte: UOL