JOSÉ LINO GRUNEWALD
Especial para a Folha
22/10/1995
O que se entende por intuição em alguns dos seus momentos
mais luminosos. Garrincha. A bola o sabia. Lá ia ele com ela, como
um herói daqueles filmes ou histórias de capa e espada, driblando,
esgrimindo contra guardas ou bandidos. Lá estava o arco à
sua espera, embaixo dele, um goleiro em pânico diante das redes.
Ou lá ia ele rumo à linha de fundo, de onde sempre saem os
centros mais perigosos, quando a pelota pode encontrar um atacante de frente
para o gol.
Alegria de viver, alegria de jogar. Tudo sob o perfume da inocência
materializada naquelas pernas tortas, ambas arqueadas na mesma direção.
Para Nelson Rodrigues, era Seu Mané ``a única sanidade mental
do país´´. E por quê? Porque ``não precisava
pensar´´. Ou, segundo Armando Nogueira, ``um herói pícaro
brasileiríssimo´´ -aquele mesmo que não hesitou
um segundo em fazer passar a bola por entre as pernas da cadeira que o
técnico Zezé Moreira havia colocado em campo, perto da entrada
da área, a fim de que os jogadores, ao ultrapassá-la, chutassem
em gol.
Essa candura não impedia que fosse um jogador frio; não tremia.
É a santa irresponsabilidade do inocente, quando um lance sempre
será apenas um lance, na pelada em terreno baldio ou diante das
multidões numa Copa do Mundo.
Todos que apareciam à sua frente a fim de barrá-lo, na lei
ou na marra, seriam os eternos ``joões´´ das várzeas
ou dos estádios. E também os laterais-esquerdos, alguns de
grande eficiência, que tinham de enfrentá-lo regularmente
nos campeonatos regionais.
Deixaram seu depoimento, por exemplo, Jordan (do Flamengo), Coronel (do
Vasco) e Altair (do Fluminense e da seleção brasileira).
Os dois últimos chegaram a dizer que não dormiam direito
nas vésperas de partida contra o Botafogo, ou seja, Seu Mané.
Além deles, seu próprio companheiro de clube (e de seleção),
o campeoníssimo Nilton Santos -outro lateral-esquerdo- falava das
facilidades que ele possuía de despachar seu marcador.
Surgiu até a expressão idiomática -marcador do Garrincha-
para designar pessoas em dificuldade ou, em certos locais, marido de mulher
fogosa.
O guerrilheiro, o mago, o mágico, o marginal da lógica. Mas,
muitos perguntam se, no futebol de hoje, com maior correria, maior preparo
físico, melhores sistemas de cobertura, defesas mais compactas evitando-se
o confronto individual, haveria espaço para as artes de Mané
Garrincha.
Da dança de incredulidades, emergem pelo menos duas vozes das mais
autorizadas, além daquela do já citado Nilton Santos: Telê
e Didi -ambos grandes jogadores e grandes técnicos.
Telê, dono de objetividade e bom senso, declarou que ele ``jogaria
antes, hoje e depois´´. Didi com sua frieza -não de
inocência, mas de raciocínio- disse que deveríamos
esperar cem anos para termos um outro Mané.
As invocações líricas e as comparações
não poderiam faltar nesse carrossel de saudade e memórias
desfechado pelo mito. Logo de saída, o nome de Charles Chaplin foi
lembrado, em face de afinidades e analogias com o personagem de Carlitos.
Tudo certo: aquilo que Chaplin exprimiu no âmbito da estética
cinematográfica se casa em fundo e forma com as piruetas futebolísticas
do Garrincha. E não esquecer que o mesmo Chaplin, quando tira a
máscara de inocência do vagabundo e faz Monsieur Verdoux,
dá um derradeiro drible geral e depois, de propósito, entrega-se
a polícia -ou seja, seus eternos marcadores.
No mesmo sentido lírico, vem outro grande -Vinicius de Moraes- quando
compõem ``O Anjo de Pernas Tortas´´. Sobre Mané,
ainda Paulo Mendes Campos e muitos outros vates derramaram seu verbo.
A cantora Elza Soares, sua antiga companheira, cantou a ``alegria do povo
em flor/ no gramado do meu coração´´. E comparou
a sua pureza com água de uma correnteza.
Enfim, correndo noutra raia, o finado locutor Oduvaldo Cozzi (um dos maiores
em sua profissão) comparou-o ao cavalo Gualicho, que, pela época,
chegou a ser campeão das pistas brasileiras.
``Mané, até hoje o meu peito se expande´´. Assim
começava uma música de carnaval, em 1959, celebrando o feito
do jogador, uma das peças básicas para a primeira conquista
do campeonato mundial de futebol pelo Brasil, lá na Suécia,
no ano anterior de 1958.
Aqui, a nação virou festa e, lá, os suecos, a gargalhar
e sorrir, mal podiam torcer por sua pátria, siderados que estavam
pelos dribles daquele desengonçado ponta-direita. E, para ganhar
sua posição de titular da seleção, teve também
que driblar técnico, chefe da delegação, psicólogo
e -quem sabe?- o dentista. Valeu-lhe o apoio de outros companheiros, especialmente
Didi e Nilton Santos.
Depois, no Mundial de 1962, com o afastamento de Pelé contundido,
tornou-se estrela absoluta do êxito de nosso escrete. Então,
a glória o aureolou. Era um benfeitor público, ``Alegria
do Povo´´, como clamava o filme de Joaquim Pedro de Andrade.
Em 1966, foi de novo convocado. Mas, foi assim, alquebrado, que chegou
na Inglaterra. Apesar de tudo, além do gol anulado contra a Hungria,
fez um belo gol de falta contra a Bulgária. Tal como, grande batedor,
outros fizera. Dez anos atrás, seu primeiro gol de falta foi contra
o Bonsucesso. E vale lembrar seus gols feitos entrando pelo meio da área:
``Eu sempre joguei de meia-direita, aqui embaixo é que me botaram
na ponta´´.
Veio a decadência, a doença, a piedade alheia. Vítima
da violência de marcadores, da ganância dos cartolas, das drogas
e ``tratamentos´´ para entrar em campo. Vítima de si
mesmo, daquela inocência pagã com que se atirava ao álcool.
Até porque, em sua intuição, sabia que o bar é
o lugar onde pode o humanismo despontar em seus instantes mais elevados.
Se o mito traduz a concretização de uma ``verdade coletiva´´,
aí está, no esporte, o de Garrincha. A verdade do prazer;
o prazer de competir. Olimpicamente.
JOSÉ LINO GRUNEWALD é poeta e tradutor, autor
de ``Carlos Gardel, Lunfardo e Tango´´ (Nova Fronteira) e tradutor
de ``Cantos´´, de Ezra Pound (Nova Fronteira), entre outros