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O ANJO EMBRIAGADO

Ruy Castro demonstra que foi o alcoolismo e não a ingenuidade que destruiu a vida de Mané Garrincha


MAURICIO STYCER
Da Reportagem Local
22/10/1995
A OBRA
Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha, de Ruy Castro. 536 págs. Companhia das Letras (r. Tupi, 522, CEP 01233-000, São Paulo, tel. 011/826-1822). À venda a partir do dia 26. R$ 31,00


LANÇAMENTO
O livro será lançado, em São Paulo, no bar Nabuco (praça Vilaboim, 59), no dia 8 de novembro, a partir das 20h

O jornalista Ruy Castro diz que o objetivo de uma biografia é revelar o ser humano para quem se habituou a só ver o herói e mostrar o herói para quem só teve a chance de conhecer o ser humano.
Ao final de ``Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha´´, o leitor verá que Ruy Castro alcançou a meta pela terceira vez.
Como já havia feito com João Gilberto e companhia, em ``Chega de Saudade´´ (1990), e Nelson Rodrigues, em ``Anjo Pornográfico´´ (1993), o jornalista faz aqui um retrato eminentemente jornalístico da vida e da obra de Garrincha.
Isso significa dizer que se trata de um relato repleto de fatos e minguado de adjetivos. Impressiona tanto pelos detalhes que permitem visualizar o esplendor do jogador quanto pelos pormenores sobre a decadência física do ser humano, que um biógrafo-fã poderia ter achado mais cômodo não descrever de forma tão rica.
Ao final das 536 páginas de ``Estrela Solitária´´, o leitor não terá dificuldade para entender, primeiro, por que ainda há quem sustente que Garrincha foi melhor jogador até do que Pelé. Depois, compreenderá por que e como se processou a vertiginosa decadência física do homem -incapaz, já aos 32 anos, de passar um dia sem beber cachaça ou batida de coco.
Para quem gosta de futebol, o maior prazer que o livro oferece é o de acompanhar os primeiros dez anos da carreira do jogador.
Antes disso, Ruy Castro oferece um saboroso painel da infância e da adolescência de Garrincha em Pau Grande, distrito de Magé (RJ), uma cidadezinha econômica e culturalmente influenciada pelos empresários ingleses da América Fabril, uma indústria têxtil instalada ali desde o início do século.
Nascido com as pernas tortas, em arco, no dia 28 de outubro de 1933, Manuel dos Santos é filho de um cafuzo (mestiço de negro com índio) e de uma mulata.
Desde os seus quatro anos, uma irmã nota que ele é pequeno como uma garrincha, um passarinho bobo, marrom, com o dorso listrado.
Destaca-se na infância e adolescência como excelente caçador de pássaros, sedutor de meninas (iniciou-se sexualmente com uma cabra, diga-se) e jogador de futebol.
Por causa desta sua terceira habilidade, em 1950, aos 17 anos, Garrincha começa a viajar de Pau Grande ao Rio (então Guanabara).
Só para registro do torcedor, Vasco, São Cristovão e Fluminense são os clubes que não enxergam talento algum em Garrincha e o devolvem a Pau Grande sem dar chances ao tímido ponteiro de pernas tortas de mostrar o seu talento.
Em 10 de setembro de 1953, dia do primeiro treino de Garrincha entre os jogadores profissionais do Botafogo, começa a história. E, junto com ela, a criação do mito e das lendas sobre o mito.
Ruy Castro dedica-se a partir desse ponto a mostrar o que há de verdadeiro e de folclore em algumas das melhores histórias sobre o jogador. São casos, escreve, que ajudaram a criar ``o mito de um gênio infantil e quase debilóide, que não fazia justiça a Garrincha´´.
Veja algumas dessas lendas:
Primeiro treino - Sempre se disse que o treinador do Botafogo, Gentil Cardoso, após ver as pernas tortas de Garrincha, comentou: ``Aqui dá de tudo, até aleijado´´.
Ruy Castro garante que é mentira, mas confirma que, na primeira bola que recebe no treino, aos 10 minutos, Garrincha dribla duas vezes Nilton Santos, então já um jogador consagrado. Na jogada seguinte, Garrincha passa a bola por baixo das pernas de Nilton Santos.
O rádio dinamarquês - Numa excursão à Europa, em 1955, Garrincha compra um rádio e o revende a um colega, por uma mixaria, após ser informado que seria besteira levá-lo ao Brasil porque não entenderia a língua que o aparelho estaria falando.
Ruy assegura que quem comprou o rádio foi o ponta-esquerda reserva do Botafogo, Hélio ``Boca de Sandália´´, e que quem aplicou a piada foi Garrincha.
João - Para Garrincha, não faz diferença quem é escalado para marcá-lo. Ele chama todos os seus marcadores de ``João´´.
Uma das lendas mais fortes sobre Garrincha, teria sido inventada, assim como outras, pelo jornalista Sandro Moreyra, amigo do jogador, para ``realçar a sua simplicidade´´, escreve Ruy.
Reunião na Suécia - Inconformados com o fato de Garrincha ficar na reserva nos dois primeiros jogos do Brasil na Copa da Suécia, em 1958, Didi, Nilton Santos e Bellini exigem a escalação do jogador numa reunião com o técnico Feola e o chefe da delegação, Paulo Machado de Carvalho.
Ruy Castro, em sua primorosa reconstituição da Copa de 58, jura que jamais houve essa reunião, embora os jogadores quisessem muito a escalação de Garrincha -o que acabou ocorrendo.
Mas nem todo o folclore em torno de Garrincha é suspeito. Ruy Castro dá como verdadeiras inúmeras histórias deliciosas que se conhece sobre o jogador. A saber:
Cadeira - Na tentativa de ensinar Garrincha a driblar menos e passar mais a bola, o técnico do Botafogo Zezé Moreira coloca uma cadeira na ponta da grande área e diz: ``Garrincha, venha com a bola, passe pela cadeira e chute para dentro da área´´. Garrincha vem com a bola e a enfia entre as pernas da cadeira, ``driblando-a´´.
Olé - O Botafogo joga no México, em 1958, contra o River Plate, base da seleção argentina. A cada drible de Garrincha no lateral Vairo, os torcedores gritam ``olé!´´, como se estivessem numa tourada. Nasce aí o grito de ``olé´´ nos estádios de futebol.
Expulsão - Num jogo contra o América do Rio, em 1962, vencido pelo Botafogo por 4 a 1, Garrincha foi ameaçado de expulsão pelo árbitro Amílcar Ferreira por driblar demais o lateral Ivan.
Ao final de 1962, Garrincha contabiliza, entre outras conquistas, dois títulos mundiais pela seleção brasileira e três títulos de campeão carioca pelo Botafogo.
Nesse ano marcante, em que começa um romance com a cantora Elza Soares, Garrincha já soma sete filhas com sua mulher, Nair, uma menina e um menino com Iraci, sua amante oficial, e um filho sueco, concebido numa noite de junho de 1959, durante uma viagem do Botafogo.
Além destes, Garrincha ainda teve uma oitava filha com Nair, um filho com Elza e uma filha com Vanderléa, sua última mulher, totalizando 13 herdeiros.
Dos três filhos homens de Garrincha, só Ulf Lindberg, o sueco, vive. Garrinchinha (filho de Elza) e Nenem (de Iraci) morreram em acidentes de automóveis.
Entre 1963, quando o seu futebol começa a sofrer por causa de uma artrose no joelho, e 1983, quando morre em consequência do alcoolismo, Garrincha enfrenta uma série de episódios trágicos, que Ruy Castro quase sempre associa à compulsão pela bebida.
Duas tentativas de suicídio, três acidentes de automóvel, num dos quais a mãe de Elza Soares morreu, dezenas de internações por alcoolismo: o calvário de Garrincha, frisa seu biógrafo, se deve ao álcool e não, como se convencionou dizer, aos dirigentes esportivos que o enganaram, aos contratos em branco que assinou, aos amigos que o abandonaram.
Ruy Castro mostra de forma exaustiva que Garrincha não foi mais prejudicado em termos financeiros do que outros jogadores de sua geração.
Não foi o único a assinar contratos em branco (Nilton Santos, por exemplo, também fazia isso). E nunca deixou de contar com a ajuda de inúmeros amigos e de várias entidades oficiais, que o ampararam financeiramente até a morte.
A dificuldade, no caso da vida e da obra de Garrincha, ao final da leitura dessa odisséia, é saber o que impressiona mais, se a sua capacidade de driblar zagueiros ou se a sua incapacidade de parar de beber. ``Não é o autor que escolhe o caminho que o personagem vai tomar´´, adverte Ruy Castro.


Autor fez mais de 500 entrevistas para o livro


Da Reportagem Local
22/10/1995
Aviso de Ruy Castro a editores e leitores: ``Até o ano 2001 não quero me meter em outra biografia. É muito cansativo´´.
Para concluir, em ``Chega de Saudade´´, que o gato de João Gilberto não se suicidou de tanto ouvir o músico tocar os mesmos acordes, entre outras lendas, Ruy Castro entrevistou 104 pessoas.
Para contar, em ``Anjo Pornográfico´´, como Nelson Rodrigues descobriu que só as mulheres normais gostam de apanhar, entre outras, Ruy ouviu 125 pessoas.
Dessa vez, para comprovar, entre outras coisas, que Garrincha nasceu no dia 28 de outubro, dez dias depois do que registra a sua certidão de nascimento, o jornalista entrevistou 170 pessoas.
Como conversou mais de uma vez com quase todas, Ruy afirma ter feito mais de 500 entrevistas para compor o perfil de Garrincha.
``Quando estou fazendo uma biografia, assumo o compromisso de todo dia aprender duas ou três coisas novas sobre o personagem. Isso é muito estafante´´, diz Ruy, explicando por que não pretende escrever outra biografia tão cedo.
O jornalista passou dois anos e meio envolvido na realização de ``Estrela Solitária´´. Nos primeiros três meses, leu todas as notícias sobre Garrincha guardadas em arquivos de jornais e revistas.
Arquivou centenas de nomes que apareciam, mesmo que só uma vez, na vida de Garrincha.
Nesse momento, Ruy se considerou pronto para começar a fazer entrevistas ``e reagir a qualquer coisa que não soubesse´´.
O biógrafo adota como norma sempre anotar um nome citado que não conhece. ``Daqui a seis meses, alguém vai citar esse nome de novo e já vou saber do que se trata.´´
Ruy também tem o hábito de jamais gravar entrevistas. ``Os melhores entrevistados são normalmente os coadjuvantes da história, as pessoas que estão nos bastidores. E essas pessoas, que não têm o hábito de dar entrevistas, se inibem diante do gravador.´´
Ruy começou sua pesquisa pelos jogadores contemporâneos de Garrincha no Botafogo. Levou seis meses até achar Araty, o jogador que descobriu Garrincha num campo de pelada em Pau Grande.
Segundo Ruy, diante das lembranças, a primeira reação de todos os que conviveram com Garrincha era muito parecida ao mito que se construiu em torno do jogador: ``Coitado, era como um passarinho. Morreu esquecido´´.
O jornalista esperou um ano para procurar Elza Soares, que conviveu 15 anos com Garrincha. ``Não queria chegar despreparado, mas mesmo assim ela não cansou de me surpreender.´´
Ao final, entrevistou Elza pessoalmente seis vezes e teve incontáveis conversas com ela por telefone -a certa altura do livro, falava com a cantora diariamente.
Nem todas as informações puderam ser totalmente confirmadas. Ao descrever o apetite sexual de Garrincha, Ruy Castro deixou escapar alguma empolgação e escreveu, com exagero, que o ``bráulio´´ do jogador media por volta de 25 centímetros.
A média do brasileiro é de 14 centímetros e os urologistas consideram casos raros os pênis de 21 centímetros. ``Chegaram a me falar em 28, mas devia ter perguntado a um médico´´, admite Ruy.
Irresistível para quem torce pelo Botafogo, a biografia de Garrincha deve agradar a outros torcedores.
Ao descrever a arrasadora estréia de Garrincha na Copa de 58, contra a Rússia, Ruy Castro, torcedor do Flamengo, escreve: ``A partir daquele dia, deixaram de existir botafoguenses, tricolores, rubro-negros, gremistas ou corintianos puros. Todos passariam a ser Garrincha, mesmo quando ele jogasse contra seus clubes´´. (MSy)


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